I - Em Busca do Tempo Perdido: O Movimento Tradicionalista Gaúcho (PARTE I)

Dois aspectos são comuns àqueles que, a partir de perspectivas diversas, cultuam as tradições gaúchas: a presença do campo, mais especificamente da região da Campanha, localizada no sudoeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com Argentina e Uruguai; e a figura do gaúcho, homem livre e errante, que vagueia soberano em seu cavalo, tendo como interlocutor privilegiado a natureza das vastas planícies dessa área pastoril (Oliven, 1988).Esse culto à tradição passou por diversos momentos. Começou em meados do século XIX, quando não existia mais a figura marginal desse gaúcho do passado, gradativamente transformado em peão de estância. Por volta de 1870 o Rio Grande do Sul experimentou modificações econômicas - com o cercamento dos campos, o surgimento de novas raças de gado e a ampliação da rede viária - que atingiram e modernizaram a Campanha, simplificando sua pecuária e eliminando certas atividades servis, como as dos posteiros e dos agregados, expulsos dos campos em grande número. A implantação de frigoríficos estrangeiros e a decadência das chasqueadas gaúchas acentuaram esse processo a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, quando começou a aparecer o ‘gaúcho a pé’, expressão usada nos romances sociais de Cyro Martins.
Em meados do século XIX a figura do gaúcho estava praticamente extinta. Por isso, estava também em condições de ressurgir como instrumento ideológico de sustentação dos que a tinham destruído (Gonzaga, 1980, pp. 118-119). Em 1868, um grupo de intelectuais e escritores furìdou em Porto Alegre o Partenon Literário, sociedade de letrados que, através da exaltação da temática regional, tentou juntar os modelos culturais vigentes na Europa e a visão positivista da oligarquia rio-grandense. Vejamos o que diz Sergius Gonzaga:
“Caberia aos integrantes da Sociedade Partenon o esforço para louvação dos tipos representativos mais caros à. classe dirigente. Sedimenta-se ali o início da apologia de figuras heróicas, alçadas à condição de símbolos da grandeza do povo rio-grandense. Encontra-se na sedição farroupilha os paradigmas de honra, liberdade e igualdade que se tornariam inerentes ao futuro mito do gaúcho, dissolvendo-se os motivos econômicos e as diferenças entre as classes, existentes no conflito. A configuração dos heróis não era ainda a do gaúcho estilizado e ‘glamourizado’, mas o vetor encomiástico já se fazia presente. Compreende-se a apologia em função do surgimento nas cidades, em especial Porto Alegre, de jovens ‘ilustrados’- oriundos dos setores intermediários - que iriam usar as ‘belas letras’ como alavanca para sua escalada. Repetia-se um fenômeno de extensão nacional: o processo de mobilidade social dessa inteligentsia de origem bastarda condicionava-se à intimidade que pudesse ter com os detentores do poder. Articulava-se uma troca: ascensão, prestigio ou simples reconhecimento cambiados por subideólogos, aptos a oferecer fórmulas (amenas à oligarquia) de representação da realidade, e por artistas, capazes de pôr em prosa e verso as qualidades varonis dessa mesma oligarquia” (Gonzaga, 1980, pp. 125-126).Embora os literatos do Partenon tenham exaltado a temática gaúcha, só em 1898 surgiu a primeira agremiação tradicionalista, o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, voltado para a promoção de festas, desfiles de cavalarianos, palestras e outras atividades ligadas ao culto das tradições. A fundação da entidade foi obra de João Cezimbra Jacques, republicano, positivista, homem de origens modestas que lutara como voluntário na Guerra do Paraguai e recebera a patente de major do Exército. Segundo ele, o Grêmio tinha como objetivo“organizar o quadro das comemorações dos acontecimentos grandiosos de nossa terra (...) Pensamos que esta patriótica agremiação não é destinada a manter na sociedade moderna usos e costumes que estão abolidos pela nossa evolução natural e que a época em a qual vivemos não comporta mais, e nem é tampouco ela -uma associação, tendo por fim trazer para objeto de suas práticas jogos e elementos recreativos do tempo corrente e importados do estrangeiro. Nem uma coisa nem outra. Mas é ela, sim, uma associação destinada a manter o cunho de nosso glorioso Estado e conseqüentemente as nossas grandiosas tradições integralmente por meio de comemorações regulares dos acontecimentos que tornaram o sul-rio-grandense um povo célebre diante, não só de nossa nacionalidade, como do estrangeiro; por meio de solenidades ou festas que não excluem os usos e costumes, os jogos ou diversões do tempo presente; porém, figurando nelas, tanto quanto possível, os bons usos e costumes, os jogos e diversões do passado; por meio de solenidades que não só relembrem e elogiem o acontecimento notável a comemorar, pelo verbo ou pelo discurso, como por meio de representação de atos, tais como canções populares, danças, exercícios e mais práticas dignas, em que os executores se apresentem com o traje e utensílios portáteis, tais como os de usos gauchescos” (Jacques,1979, pp. 56 e 58).
Além de enfatizar o culto às tradições, a citação trata de questões que, na época, despontavam: a existência de costumes superados por “nossa evolução natural”, a problemática das práticas trazidas “do estrangeiro”, a existência de “bons” usos e costumes etc. Em outros termos, as mesmas questões seriam recolocadas mais tarde.
Havia dois aspectos comuns ao Partenon Literário e ao Grêmio Gaúcho. O primeiro: ambos eram formados por pessoas de origens modestas, não detentoras de terras ou de capital. Como ocorreu em outras partes do Brasil e do mundo, a atividade intelectual era, ao lado das carreiras militar e política, uma das poucas formas de ascensão disponíveis a pessoas oriundas das camadas depossuídas e desejosas de ingressar na esfera do poder. As condições econômicas, sociais e políticas ainda não permitiam que se formasse uma camada de intelectuais dotada de relativa autonomia.O segundo aspecto era a preocupação com a questão da tradição e da modernidade, presente em ambas as entidades, embora sob formas diferentes. Ao mesmo tempo em que tinha como modelo o que considerava mais avançado da Europa culta, o Partenon evocava a figura tradicional do gaúcho e louvava seus abalados valores. O Grêmio Gaúcho, nas palavras de seu fundador, procurava manter as tradições, mas sem excluir os costumes do presente. Nos dois casos, um mesmo pano de fundo: um estado em transformação, no qual a tensão entre passado e presente começava a se fazer sentir.
No ano de criação do Grêmio Gaúcho, o líder republicano e positivista Borges de Medeiros assumiu pela primeira vez a presidência do Rio Grande do Sul, iniciando um domínio sobre a-política local que duraria trinta anos. A Proclamação da República levara ao poder o Partido Republicano Rio-Grandense, no qual era pequena a influência da oligarquia pecuária da Campanha. O novo grupo dominante, embora também pertencente à elite econômica, provinha do Norte do estado e era formado por jovens que haviam estudado em universidades do Centro do país. Positivistas, dotados de um projeto modernizador e autoritário, consideravam o despotismo esclarecido como a melhor estratégia para organizar a sociedade local. Auguste Comte era favorável à existência de “pequenas pátrias” com não mais do que três milhões de habitantes (na época da Proclamação da República, o Rio Grande do Sul tinha aproximadamente um milhão). Como, naquele momento, as províncias não tinham condições de se tomar independentes, os positivistas brasileiros, interpretando a idéia de Comte, defendiam a adoção de um federalismo radical. Para Júlio de Castilhos, fundador e ideólogo do Partido Republicano Rio-Grandense, isso implicava “o não-reconhecimento de uma única nação brasileira, mas de várias nações brasileiras provisoriamente organizadas sob uma federação; a independência de cada estado para organizar-se de forma republicana sem nenhuma limitação por parte da Constituição Federal” (Pinto, 1986, p. 36).
Coerente com a idéia positivista de que o progresso só poderia ser alcançado se a ordem fosse mantida, o lema de Júlio de Castilhos era “conservar melhorando”. Pouco antes da Proclamação da República, ele defendeu em A Federação,jornal de seu partido, que o 20 de setembro (data de eclosão da Revolução Farroupilha de 1835-1845) fosse adotado como Dia do Gaúcho: “A comemoração do 20 de setembro tem, pois, este sentimento, significando que o passado é a fonte em que o presente se inspira para delinear o futuro”. Com o advento da República, e a ascensão de seu partido ao poder no Rio Grande, Castilhos elaborou uma constituição estadual de forte inspiração positivista, que definia como “insígnias oficiais do estado as do pavilhão tricolor da malograda República Rio-Grandense”.
Nas Américas, assim como na Europa, a associação entre passado e presente foi uma constante em projetos modernizadores ligados à criação de estados nacionais ou à organização da sociedade. Se a nação é “uma comunidade de sentimento que normalmente tende a produzir um Estado próprio” (Weber, 1982, p. 207), antigas tradições reais ou inventadas - precisam ser invocadas para dar fundamento ‘natural’ às identidades em vias de criação, obscurecendo-se assim o caráter artificial e recente dos Estados nacionais. Essa dialética entre velho e novo, passado e presente, tradição e modernidade, foi uma constante nos processos que estamos analisando no Rio Grande do Sul. A fundação do Grêmio Gaúcho foi seguida pela criação de mais cinco entidades, consideradas pioneiras pelos tradicionalistas (1) União Gaúcha de Pelotas (fundada em 1899 por Simões Lopes Neto, grande escritor regionalista), Centro Gaúcho de Bagé (1899), Grêmio Gaúcho de Santa Maria (1901), Sociedade Gaúcha Lombagrandense (fundada em 1938 em área de colonização alemã) e Clube Farroupilha de Ijuí (fundado em 1943 em área de colonização alemã e italiana).

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Autor: Ruben Oliven
Fonte: http://www.anpocs.org.br/