Sobre Festejar a Cultura Gaúcha

Texto escrito em réplica à publicação de A Disneylandia de bombachas por Cristóvão Feil, em 25 de setembro de 2004.
Autor: Evaldo Munõz Braz
Difícil compreender o intelectual Cristóvão Feil. Ele ataca os tradicionalistas formais ou a cultura gaúcha como um todo? Provavelmente ele ataca os tradicionalistas, e não tenho procuração em defende-los, mas logo na introdução, ele garante que, no Rio Grande, não se nasce gaúcho, torna-se artificialmente gaúcho.Bem, neste caso eu tenho que opinar, pois não tenho nada de artificial.
Nos últimos 20 anos, aproximadamente, grande parte dos intelectuais rio-grandenses optou por medir músculos, não com grandes desafios no desenvolvimento de teorias novas, que possam melhorar nossa sociedade. Nada disso. Nossos intelectuais gostam de mostrar sua inteligência atacando movimentos culturais locais, os quais, por acaso, tem boa acolhida por grande parte da população. Aliás, esta parte da população, já identificada por pesquisadores como Ruben Oliven, nada tem a ver com latifúndio, ou mesmo com nossa burguesia. Quer dizer, estes intelectuais lutam contra a preferência popular.
O fato é bastante estranho. Pois ninguém imaginaria um intelectual japonês malhando o samurai, ou um intelectual nordestino malhando o admirável vaqueiro. Ou um paulista malhando o seu caipira/caubói, super americanizado. Aliás , ninguém nem nota isso ou pensa criticar isto.
Feil começa logo com um erro sempre repetido no Rio Grande. Afirma que o gaúcho é uma invenção republicano farroupilha e positivista e latifundiária. Ora, o positivismo odiava o gaúcho. Tinha-o como bárbaro, e bárbara a sua influência. Na época, foram massacrados criticamente Simões Lopes Neto e Alcides Maya. Este último com seu livro Ruínas Vivas, verdadeira obra-prima. Penso que é necessário ler mais um pouco antes de elaborar teses vazias.
O viés latifundiário já esta desgastado. Quem leu Martin Fierro sabe que a cultura baseia-se primariamente no indivíduo sem posses. Lembrando Darwin, ele notou sobre o gaúcho: - Como podem indivíduos sem posse ter tanto orgulho? Quem leu Assunção ou Rodrigues Molas sabe que o gaúcho é pré-Fazenda. Quando ela institui -se, ele torna-se marginal. Depois, mais tarde, dela dependente.
Outra fator que o autor considera erroneamente é o de esquecer que o gaúcho, com suas idiossincrasias culturais, era conhecido previamente bem antes do Parthenon Cultural e mais ainda do Paixão Cortes.O que consideramos cultura gaúcha, nós, os que se consideram gaúchos sem artificialismo, começou por volta de 1600 nos pampas da América do Sul. Pré-fazenda, pré-boi mas derivado da, isto sim, introdução do cavalo e da mistura da cultura ibérica com a cultura indígena. Bem, depois acontece o gado chimarrão, e a mistura estava completa. A cultura que nos atraiu e nos influenciou diz respeito ao tropeiro, ao carreteiro, aos rio-grandenses observados por Dreys, aos gaúchos nômades observados também por Dreys(1817 no Rio Grande), Luccock (1807 no Rio Grande), Darwin (1832 no Prata), Hörmeyer (1850 no Rio Grande), padre Schoenards (1900 no Rio Grande), Head (1820), matreros, peões, tumbeiros, peonas, e um variado gradiente de campesinos do pampa. Isto é o que nos afeta e atrai como gaúcho.
Acho, aliás, que o autor também erra de mão ao acusar o tradicionalismo (o qual, reafirmo, não tenho ligação) de preconceituoso com demais culturas, pois um dos símbolos do Rio Grande, por eles defendido não é Sepé Tiaraju, o cacique indígena defensor das Missões?
Outro fator, errôneo, defendido pelo autor e por vários intelectuais não gaúchos, mas apenas rio-grandenses, é suporem o Rio Grande isolado do mundo. Esquecem que pré-Parthenon Literário, já se escrevia literariamente sobre o gaúcho na França (Dumas) , na Alemanha (Kal May), nos Estados Unidos (Walt Witman no portentoso Leaves of Grass), no mundo.
Porque escreviam sobre o gaúcho? Porque se tratava de um tipo diferenciado culturalmente, chamava a atenção, apenas isto. Culturalmente, repito, antropologicamente chamava a atenção, assim como outros tipos no mundo. Ora, seu ethos, ou seus epítetos são apenas fatores culturais, isto deve ser bem frisado. Ninguém o supõe especial de outros tipos brasileiros, não, apenas um agrupamento que tinha determinadas obrigações culturais (refiro-me ao tipo campeiro do passado) modais, ou seja que a grande maioria tinha obrigação de cumprir. Algumas destas obrigações, diga-se de passagem, compartidas com tipos de outras partes do mundo. Os “esboços de construção mental” não são invenção do Parthenon ou de Barbosa Lessa, mas de centenas de viajantes estrangeiros que estiveram mais entre 100 e 200 anos atrás nos pampas argentinos, uruguayos e rio-grandenses e anotaram o comportamental de uma região situada no Rio Grande do Sul, Uruguay e parte da Argentina.
Aliás, por falar em antropologia, estes nossos intelectuais rio-grandenses, em guerra constante com a cultura gaúcha, parecem crer numa antropologia evolucionista, pré-Franz Boas, preconceituosa, etnocentrista e do século retrasado. Impressionante! Nossos intelectuais iluministas consideram as formas de estar-no-mundo somente as ditadas pela mídia (neste momento, o espaço aberto pela Agência Carta Maior é fundamental!).Eu, pessoalmente recomendaria sempre este pessoal que ataca cegamente a cultura gaúcha, a buscar sólidas bases de informações históricas e fundamentalmente ligadas à antropologia cultural. Recomendo também pesquisarem quadros antigos em museus na Argentina, Brasil, Uruguay etc. E estudarem as letras de nossas músicas. Como diria Edgar Morin, não há um método padrão. Para emitir-se opinião sobre algo é preciso mais do que uma tese acadêmica que tenha por finalidade apenas instrumentalizar o futuro pesquisador em sua capacidade de pensar e organizar suas pesquisas. São necessários sistemas mais abrangentes de captação das informações, antes de dar gafes intelectuais.
Feil deve ser jovem, pois vê com novidade com a velha história da bombacha ter origem fora do Rio Grande. Já comprovadamente com mais de 140 anos. Deus meu, até o kilt escocês tornou-se tradicional com menos tempo. Mas nossas reminiscências primeiras vêm do tempo do chiripá.
Quando comemoramos a Revolução Farroupilha (acho que todos os estado tem suas comemorações principais não é mesmo? Os cariocas não tem seu supercarnaval?), estamos aproveitando para celebrar uma raiz cultural e não defendendo o latifúndio. Basta ouvir nossa musica, sempre com forte crítica social embutida, desde a payada de Hernandez. Neste mar atual de mediocridade da música brasileira, parece que somos uma ilha de inconformismo político/social. Mas isto não é visto pelos críticos de nossa cultura. Na época da ditadura no Uruguay, é bom lembrar, a poesia Martin Fierro era proibida naquele pais.
Fazendo um ligeiro parênteses, Francisco Ferreira de Souza, cirurgião-mor do 1o Regimento do Rio de Janeiro, acompanhando por mar sua unidade até o Rio Grande em 1773 (as notas só seriam publicadas em 1777), ou seja, 230 anos atrás, comenta sobre o povo local: “A ler e escrever se não empregam , pois todo destino é laçar, arrear e bolear.” Isto parece ser indicativo de nosso passado.
A cultura gaúcha tem sido malhada, no Rio Grande (é sempre bom lembrar que esta alucinação é interna), na falta de um desafio intelectual maior, por pessoal de esquerda e direita. Note-se o vazio de ambição de nossos intelectuais.
Marx previa que o capital, na sua ânsia por expansão, buscaria o máximo de espaço geográfico (e isto vale tanto com relação ao petróleo do Iraque como nosso espaço cultural no Rio Grande), homogeneizando ao máximo os gostos, para vender seu produtos (todo lixo de diversão divulgado pela grande mídia, esta, extremamente ligada ao somente comercial) . Marx continua mais atual como nunca.

O patrulhamento cultural efetivado por estes “intelectuais” servem apenas para propósito de nossa alienação. Devemos sambar (nada contra esta invenção do Estado Novo) apenas, ou ouvir a musica caipira (atual) pasteurizada (que saudades de Tonico e Tinoco)?
Ora, olhem as estatísticas, algumas décadas atrás, a maior parte da população do Rio Grande (e do Brasil) era do campo. Descendemos de pessoas do campo. Eu descendo de pessoas do campo. Peões, carreteiros. Uso diariamente, sem saber, assim como muitos dos “intelectuais”, dezenas de palavras de origem campeira. Algum resto de comportamento, provavelmente também ficou em nós. Porque o preconceito então? Difícil responder. Talvez falta de opção para o desenvolvimento de teses? Fraqueza intelectual? Duvidosa orientação via universidade? Na Itália, o filosofo Gramsci já identificava esta postura da intelectualidade italiana de “tradição livresca e abstrata” que se sente mais ligada a poetas e escritores medíocres do que aos camponeses de seu país.
Por outro lado, o nosso estado tem uma tradição de retribuir com fama aqueles que atacam a cultura gaúcha. Há o caso de historiadores famosos no Rio Grande do Sul, que devem seu prestígio não à qualidade de suas pesquisas, mas apenas ao fato de incluírem em seus textos opiniões maniqueístas sobre nossos costumes, história, culinária, música, festas regionais etc. A atração é irresistível, pois imediatamente se abrem jornais e a mídia como um todo aqui no estado. E também imediatamente o intelectual entra para o Hall da Fama fácil.
O autor diz que a cultura gaúcha sufoca outras formas de cultura dentro do Rio Grande. Caso seja verdade, o que não é, de quem seria a culpa se outras formas não aparecem, se não da própria Academia. Se estes intelectuais não perdessem tanto tempo atacando o gaúcho poderiam encontrar tempo para novos desafios. Aliás, na falta de pesquisadores da Academia é que surge uma etnologia gaúcha eventualmente improvisada. E também, parece-me, não é função dos tradicionalistas fazerem o papel das Universidades e demais instituições de ensino e pesquisa cultural ou mesmo folclórica.
Agora, por favor pessoal, nascemos aqui, fica difícil para mim, interessar-me primeiramente por outras culturas, preferir Chitãozinhos a Jayme Caetano Braun. Como posso não ser atraído pela leitura de Ivan de Pedro Martins, ou Darcy Azambuja, ou Cyro Martins, ou Tabajara Ruas, ou Pedro Wayne, ou Érico Veríssimo, ou Guiraldes, ou dos contos gaúchos borgeanos? Como posso não gostar de mate, milongas, gineteadas, churrasco etc? Como posso não gostar da poesia de Luis Menezes? Evidentemente que isto não me impede de ler e gostar de Conrad, Elliot, Kafka, Fernando Pessoa, John dos Passos, Jorge Amado, Thomas Man e tantos outros, gostar de jazz etc. (aliás, nosso estado é rico em excelentes bandas de rock).
Vou terminar com uma frase do grande escritor argentino, Jorge Luis Borges: ²Assim como os homens de outras regiões pressentem e admiram o mar, nos veneramos a planície sob os cascos dos cavalos”
Sobre o autor: Evaldo Muñoz Braz é pesquisador sobre a cultura gaúcha. Autor de Manifesto Gaúcho e Retratos do Gaúcho Antigo, a gênese de uma cultura.
Origem: Enviado pelo autor