Cultura Gaúcha e Semana Farroupilha

Autor: Evaldo Muñoz Braz (2006)
Logo começarão as comemorações da Semana Farroupilha, que verdadeiramente tem um caráter simplesmente popular/cultural e imediatamente, alguns de nossos intelectuais riograndenses (normalmente são os mesmos) começarão a por em xeque nossa cultura com abordagens aparentemente politizadas mas que encobrem pensamentos de raiz barroco-colonialistas. Suas abordagens críticas sobre a cultura gaúcha trazem na raiz, a internalização da perspectiva conceitual e interpretativa da elite. Sim, elite, pelo menos tem-se como tal: elite cultural.
Normalmente a cultura gaúcha é criticada, atacada em seu todo. Literatura, poesia, história, relações econômicas, ilações de tradição cultural, comemorações e festividades, produções musicais, etc. Deste fato, pode-se se depreender que o que se visa é atacar o todo, ou seja, a cultura “gaúcha”, seja ela correta ou não. Caso contrário, a crítica atingiria partes desta estrutura, se direcionaria a identificar e corrigir equívocos. O que se vê entretanto, são agressões apaixonadas e veementes, revestidas de informações intelectuais, mas vazias conceitualmente.
(I)
Um exemplo clássico é verem o gaúcho (neste nosso caso, uma representação do homem rural pampeano de antigamente) como um símbolo da oligarquia rural. Ora, o símbolo ícone do gaúcho é o poema Martin Fierro, de José Hernandez. Fierro é pobre, um inadaptado ao novo sistema vigente (implantação das estâncias, apropriação por estas do gado chimarrão e posteriormente, o alambrado) . Para muitos um rebelde. De qualquer maneira, um sem posses.
Mais recentemente, Jayme Caetano Braun (sempre mal analisado) é pleno de payadas críticas e sociais, como a intitulada “Prece”. E “Tropa Amarga” de Luis Menezes, é uma antiga e potente crítica social. Quer dizer, são letras e músicas nada alienadas.
Continuando. Em uma avaliação amostral nossa das músicas/letras nativistas/tradionalistas/gauchescas, identificamos 27% de músicas com intenção de crítica econômico/social. É um número significativo. Estas críticas vão desde o questionamento a distribuição de terras, desemprego, críticas aos desmandos de governos estaduais e federais, etc. O restante se distribui entre musicas e letras românticas, revoluções passadas, outras narrativas históricas, descrições geográficas, atividades “profissionais” (ligadas a lida campeira) e cunho humorístico e incluindo-se nestas últimas e em menor número, as relativas a “peleas” normalmente em bailes.
Seria crucial e bem dentro da metodologia científica que estes intelectuais, antes de elaborarem suas críticas (muitas baseadas preguiçosamente e infinitamente em trabalhos antigos: sempre atribuindo tudo ao Partenon Literário), abordassem verdadeiramente nosso patrimônio cultural.

(II)
Um segundo ponto importante trata da crítica ao machismo implícito as comemorações e demais divulgações da cultura gaúcha. Parece que aí há uma confusão com o valor modal “coragem”. Ora, o que qualquer antropólogo pode identificar imediatamente é que está se tratando de valores culturais.
Não de heranças genéticas ou qualquer forma de pretensa superioridade regional. Falamos de cultura como o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo estas atividades adquiridas por um processo de aprendizagem e transmitidas ao conjunto de seus membros (LAPLANTINE, 1988). Como diz o escritor argentino Jorge Luís Borges, o gaúcho tinha “a obrigação da coragem” A “obrigação da coragem” não é (ou era) patrimônio apenas da região pampeana (RS, Uruguay e Argentina), mas de várias regiões da América Latina, como por exemplo no México rural do passado. Érico Veríssimo descreve magistralmente esta questão, quando o filho do Dr. Rodrigo Cambará (O Arquipélago, O Tempo e o Vento), Floriano, não se ajusta mais ao modelo paterno baseado na cultura da coragem (FONSECA BINS, 2005). Também há um personagem gaúcho (campeiro) na saga de Veríssimo, Liroca, que atravessa décadas num combate eterno contra o medo. É um personagem perfeito para explicar a implicação de uma cultura.

Para completar, Borges dá uma lição de antropologia cultural ao narrar o drama temporal de Pedro Damián, no conto A outra Morte (no livro O Aleph): “Em vão me repeti que um homem acossado por um ato de covardia é mais complexo (...) que um homem meramente corajoso. O gaúcho Martin Fierro, pensei, é menos, memorável que Lord Jim ou Razumov. Sim, mas Damián, como gaúcho, tinha obrigação de ser Martin Fierro.”
(III)

Um outro ponto. Muitos intelectuais se acham literalmente em uma cruzada pela “modernização intelectual da província”, como se um tipo de produção (ligada a cultura gaúcha), fosse excludente com o outro, mais urbano, ou como queiram, mais sofisticado. Pior que isto, afirmam que a cultura gaúcha “engessa” as demais. Estranho. Aí parece haver outro grande equívoco, pois não serão as mesmas pessoas que vão produzir as diferentes obras. Existe a escolha. E, além disso, temos excelentes escritores, excelentes filósofos, historiadores. Um cinema bem urbano que se afirma. Excelentes bandas de rock. Bem, se ainda assim não podemos competir culturalmente (como insistem estes intelectuais) com São Paulo, seria de se sugerir que estes intelectuais críticos tirassem do forno suas excelentes e pós-modernas contribuições para ombrearmos com outras províncias. Mas verdadeiramente não acho que um tipo de produção prejudique o outro. Não pode ser esquecido que muitos autores que abordaram a cultura gaúcha (pampeana) tiveram alto nível crítico e alta qualidade literária, tais como Pedro Wayne, Cyro Martins, Ivan de Pedro Martins, Érico Veríssimo, Mario Arregui (Uruguay), Brasil Dubal, Alcy Cheiuche, Sérgio Metz, Tabajara Ruas, etc. Por outro lado, um bom número de músicos gauchescos tem excelente nível musical e de letras. Nei Lisboa disse um dia que gostaria de ver uma ponte entre a musica urbana do Rio Grande e Jayme Caetano Braun.

Também não pode ser esquecido que a Academia (RS) praticamente esqueceu a “cultura guasca” (interessante que mais de 1500 estudantes universitários no Rio Grande do Sul participam como ginetes em rodeios gaúchos).
(IV)
E nós, qual a nossa relação com o gaúcho do campo do passado ou de agora? Ora, três décadas atrás, 50% da população era do campo. Difícil alguém metropolitano “puro”. Luciana Hartmann (2004) enfatiza esta passagem de valores em um estupendo trabalho sobre a fronteira. Quase todos os rio-grandenses, temos um ou outro parente originário de zona rural. Utilizamos, sem nos percebermos, de várias expressões derivadas da lida campeira. O gaúcho, quando surge com este nome, é apenas um símbolo clímax, mas na verdade desde 1600, homens de bota de garrão de potro, poncho e a cavalo andam pelos pampas. Criaram palavras (expressões) ou as adaptaram, criaram danças ou as adaptaram, criaram equipamentos como o laço, ou os adaptaram, tiveram mulheres (e estas estão incluídas neste caudal cultural), tiveram filhos, domaram, carretearam, tropearam, influíram ou se deixaram influenciar pelos pequenos povoados. Foram para a guerra, foram bucha de canhão para construção de países, lutaram, roubaram, foram roubados, mataram, morreram, tiveram medo, tiveram coragem, criaram um povo, passaram todas as agruras e em algum momento foram felizes em uma pulperia, num repente, ou com uma china. Criaram uma cultura. Não se tratava de um tipo estanque, o gaúcho, entendam por favor, isto é simbólico, mas de comunidades inteiras em plena dinâmica. Mulheres, homens, crianças, falando a mesma linguagem. Gostando dos mesmos alimentos. Nomeando os objetos e fatos cotidianos da mesma maneira. Bem, esta cultura, estas palavras, este modus vivendi, para o bem ou para o mal, produtos e subprodutos de tudo isto, chegaram até nós. Não inventamos esta relação. Ela esta em nossa pele.
(V)
A última questão é a comemoração em si da Revolução Farroupilha. Tão criticada. Bem eu penso com relação a comemoração que trata-se de uma ato, uma intenção de comemorar um modo ideal de agir. Rebeldia outra vez. Mostrar descontentamento, mostrar a capacidade de dizer que se pode ficar descontente com os governos. É uma festa popular. Na época tinha vários contextos entre os quais, ninguém pode negar, a implantação da república no Brasil, a abolição da escravatura, mudar as condições econômicas e sociais da região (escolas, pontes, impostos, etc). Se havia em alguém, camuflado, intenções menos nobres, não é isso que vamos comemorar. Se não foi popular, precisou de apoio popular. Vamos comemorar a capacidade de se opor a alguém mais forte. Vamos mostrar isto pra os jovens.
Finalizando, Rousseau, destoante da europeização etnocêntrica em marcha no século Dezoito, , previu:“(...) reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: (...) incessantemente seguem-se os usos (moda) e não o próprio gênio (caráter pessoal). Não se ousa mais parecer tal como se é, e , sob tal coerção perpétua,...” o rebanho agora, querem nossos intelectuais, tornar-se global.
Deixem as crianças, jovens e velhos comemorarem nosso gauchismo, nativismo, campeirismo ou como quiserem chamar. Amamos a planície e os cavalos.
Sobre o autor: Evaldo Muñoz Braz é pesquisador sobre a cultura gaúcha. Autor de Manifesto Gaúcho e Retratos do Gaúcho Antigo, a gênese de uma cultura.
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