O Gaúcho e a Fronteira no Mundo Virtual I

Introdução

Identidade é “o processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói significado principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos, a ponto de excluir uma referência mais ampla a outras estruturas sociais” (CASTELLS, 2000, p. 39). Desta maneira, os valores e o comportamento de um grupo estão diretamente relacionados com seu conhecimento. Ou seja, sua identidade baseia-se na teoria e prática das tradições (BORNHEIM, 1987, p. 19-20). Para constitui-la, o estabelecimento de mitos e símbolos próprios é fundamental.

O mito é um sistema de comunicação, uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma. Será necessário, mais tarde, impor a essa forma limites históricos, condições de funcionamento, reinvestindo nela a sociedade (BARTHES, 2003, p. 199).Para o autor, sendo o mito “uma fala”, tudo pode construir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. Ele acredita que “a mitologia tenta recuperar, sob as inocências da vida relacional mais ingênua, a profunda alienação que essas inocências têm por camuflar. (...) A mitologia é uma concordância com o mundo, não como ele é, mas como pretende sê-lo” (BARTHES, 2003, p. 248-49).Identidade cultural e nacionalismo são conceitos que geralmente caminham juntos. De acordo com Smith (1997, p. 67), o nacionalismo é uma doutrina ideológica que visa “obter e manter a autonomia, unidade e identidade em nome de um grupo humano que segundo alguns de seus componentes constituem de fato ou em potência uma nação”. Castells (2001, p. 47), por sua vez, complementa, dizendo que o “fato de o nacionalismo contemporâneo ser mais reativo do que ativo, tende a ser mais cultural do que político, e, portanto, mais dirigido à defesa de uma cultura já institucionalizada do que à construção ou defesa de um Estado”. Aqui vale destacar que, embora esteja associada ao Estado-nação, “a idéia de que as nações somente podem ser livres se tiverem seu Estado próprio soberano não é imprescindível, nem universal” (SMITH, 1997, p. 68). Um exemplo dado pelo autor é a região da Catalunha, na Espanha, onde os catalães, ao invés de visarem a independência incondicional, objetivam o autogoverno e a paridade cultural. Já o cenário do Rio Grande do Sul é um tanto diferente, como será visto a seguir.
O gaúcho e sua nação
Assim como os demais mitos, o do gaúcho também foi construído. Até meados do século XIX, o termo gaúcho era pejorativo, advindo do termo guasca[2] e, posteriormente, de gaudério, nome este dado aos contrabandistas de gado oriundos do estado de São Paulo. Depois, se transformou num substantivo gentílico. “O que ocorreu foi uma ressemantização do termo, através do qual um tipo social que era considerado desviante e marginal foi apropriado, reelaborado e adquiriu um novo significado positivo, sendo transformado em símbolo de identidade regional” (OLIVEN, 1989). Comparando o gaúcho ao perfil de soldado, os estancieiros conseguiram mobilizar os peões para os combates da Revolução Farroupilha e demais guerras ocorridas nos países vizinhos da região sul do Brasil.
Trata-se essencialmente de um fenômeno ideológico o processo de construção do gaúcho como campeador e guerreiro, inserindo-o num espaço histórico onde os atributos de coragem, virilidade, argúcia e mobilidade são exigidos a todo momento, transportando-o ao plano do mito. E não há caso em que transpareça tão claramente a vitória da ideologia (CHAVES apud OLIVEN, 1989).O Movimento Tradicionalista desempenhou um papel fundamental na construção da identidade cultural gaúcha. Numa breve retrospectiva, Tau Golin (apud MELO, 1995, p. 7-8), diz que, em 1898, foi fundado o Grêmio Gaúcho, a primeira tentativa de estabelecer a mítica do gaúcho, buscando no passado aquilo que viam como tradição ou história do Rio Grande do Sul. No fim da década de 40, foram criados os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), espécie de clubes temáticos do tradicionalismo gaúcho. Neles, os líderes do Movimento Tradicionalista recolheram elementos da cultura popular e estabeleceram as ditas verdadeiras tradições do Rio Grande do Sul, impondo um modelo para todos os gaúchos. Outro período importante foi a década de 70, com o surguimento do Movimento Nativista e seus festivais de música regional. Todo este mundo simbólico, composto por CTGs, vestimentas típicas, culto ao chimarrão, etc., hoje está presente na vida social dos rio-grandenses-do-sul e é responsável, segundo Leal (apud JACKS, 1999, p. 72) por “uma espécie de negação da identidade nacional como um todo e muito mais uma identidade do gaúcho como ser único”. Oliven (1989) ressalta tal aspecto:
Embora brasileiro, ele seria muito distinto de outros tipos sociais do País, guardando às vezes mais proximidade com seu homônimo da Argentina e do Uruguai. Na construção social da identidade do gaúcho brasileiro, há uma referência constante a elementos que evocam um passado glorioso no qual se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em vastos campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a lealdade, a honra etc. Em outra obra, Oliven (1992, p. 100) aponta que a identidade cultural gaúcha baseia-se no passado que teria existido na região do Rio Grande do Sul denominada Campanha e no mito do gaúcho. O autor acredita que “manter a distinção entre o Rio Grande do Sul e o Brasil seria uma forma de preservar a identidade cultural do estado. Por isso, um elemento recorrente no discurso tradicionalista é a referência à ameaça que pairaria sobre a integridade gaúcha” (OLIVEN, 1992, p. 108). Isto pode explicar os anseios separatistas tão presentes na história do estado. O principal movimento separatista aconteceu ainda no século XIX. A Revolução Farroupilha, uma luta armada comandada pelos estancieiros inconformados com a centralização imperial e com a taxação excessiva do charque gaúcho, visava dar mais autonomia à Província. Seu estopim foi em 20 de setembro de 1835, data da invasão da capital, Porto Alegre. Um ano depois, os farrapos proclamaram a República Piratini e elegeram Bento Gonçalves como presidente. Esta guerra somente findou com a assinatura do Tratado do Ponche Verde, em primeiro de março de 1845, entre os farrapos e o governo brasileiro.Já no final do século XX, mais precisamente no ano de 1993, viam-se diversos movimentos separatistas espalhados no Rio Grande do Sul: o Partido Farroupilha, do advogado porto-alegrense Granata; o movimento Pátria Livre, de “Domingão”, também da capital gaúcha, e outros menores, que ultrapassavam a marca dos vinte na região sul. Porém, nenhum destes teve tanta repercussão quanto o Movimento Nacionalista Pampa. Fundado em 18 de fevereiro de 1990, o Movimento Nacionalista Pampa surgiu com a intenção de criar um novo país a partir da unificação dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Seu líder é Irton Marx, um gaúcho de Santa Cruz do Sul. Ele idealizou um movimento bastante atuante, que já contou com 700 comissões municipais no sul do país, publicou o livro “Vai nascer um novo país: República do Pampa Gaúcho”, de sua autoria, e até elaborou uma bandeira desta nova república. Irton Marx tinha como argumento principal o fato de que, teoricamente, o Estado do Rio Grande do Sul seria, desde 1835, uma República, pois o Tratado do Ponche Verde extinguiu somente a Revolução Farroupilha e não a independência gaúcha - prova disso são a bandeira e o brasão do Estado, que trazem a inscrição “República Rio-grandense”, além do hino gaúcho, que retrata a comemoração da Independência da República. Por não acreditar na possibilidade do governo brasileiro um dia vir a dar a autonomia às Unidades Federativas, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos, o movimento pela República Federal do Pampa sonhava com a separação dos estados gaúcho, catarinense e paranaense. Os motivos apontados por Marx são o tratamento periférico dado pelo Governo Federal a esta região e as grandes diferenças econômicas e culturais para com o resto do país, que evoca a idéia do gaúcho como não-brasileiro.

Não suportamos mais a demonstração da má vontade do governo do Brasil em relação ao “País dos Gaúchos”, ou à República do PAMPA GAÚCHO. A desorganização e a corrupção generalizada por todo o território brasileiro, a indiferença para com a sua e a nossa gente, nos impelem a tomar uma decisão tão drástica que é o buscar a nossa própria autonomia, resgatando nossa história, firmando-nos como um povo autônomo, que olha o futuro com raro brilhantismo (MARX, 1990, p. 52).
Exposto na imprensa e investigado pela Polícia Federal, Irton Marx teve sua imagem desgastada. Porém, ainda hoje tenta fazer valer sua utopia separatista. Tanto que, em agosto de 2003, relançou o jornal semanário santa-cruzense O Estado Gaúcho, fator importante para a sua eleição como o vereador mais votado de sua cidade natal, após inúmeras tentativas frustadas em pleitos anteriores.
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