A Figura do Gaúcho e a Identidade Cultural Latino Americana

Este trabalho tem por objetivo examinar, a partir da análise de reportagens de jornais – Zero Hora e Correio do Povo – publicadas durante as comemorações da Semana Farroupilha, a importância da figura do gaúcho como um dos ícones da identidade sul-rio-grandense, considerando-a uma figura relevante para uma das possíveis figuras representativas da assim chamada identidade latino-americana. A análise considera o papel pedagógico exercido pela mídia no sentido de instituir verdades e produzir subjetividades, ensinando determinadas maneiras de se ser gaúcho.
O referencial teórico da pesquisa está situado no campo dos Estudos Culturais, cujos conceitos chave são justamente cultura, identidade, sistemas de significação e poder, entendendo a cultura como constituidora de todos os aspectos da vida social, e considerando que os processos de significação social, inerentes a ela, cultura, não se dão sem permanentes lutas e tensões.
Desta forma, Silva (2000) observa que “a cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. A cultura é, nesta concepção, um campo contestado de significação. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos” (p. 133-134).
A partir deste jogo pela imposição de sentidos e de definições das identidades culturais e sociais de determinados grupos, podemos considerar o caráter relacional das identidades, o qual nega qualquer tipo de essência ou característica transcendente. Woodward (2000) enfatiza justamente esta perspectiva não-essencialista das identidades, colocando em xeque a idéia de unicidade e da presença de certas características que se perpetuam através do tempo. Wodak (1999) utiliza o conceito de “identidade múltipla”, esclarecendo que “o termo é designado para descrever o fato de os indivíduos bem como os grupos coletivos tais como as nações serem em muitos aspectos híbridos de identidade, daí ser uma falácia e uma ilusão a idéia de uma identidade ‘pura’ homogênea no nível individual ou coletivo” (p. 16).
Esse aspecto de hibridismo cultural será discutido em três reportagens publicadas nos dias 12 e 18.09.03 (no jornal Correio do Povo) e no dia 15.09.03 (no jornal Zero Hora). Todas elas referem-se ao desfile de 20 de Setembro – data máxima do Rio Grande do Sul, na qual se comemora a Revolução Farroupilha - na cidade de Santana do Livramento. No ano de 2003, o desfile se estendeu até a cidade fronteiriça de Rivera, no Uruguai.
Ainda no que diz respeito ao processo de produção cultural da identidade, acrescento ser este um campo contestado, onde diferentes grupos sociais lutam pela imposição de determinados significados, e não de outros, pois, conforme observa Costa (1998), “ quando alguém ou algo é descrito, explicado, em uma narrativa ou discurso, temos a linguagem produzindo uma ‘realidade’, instituindo algo como existente de tal ou qual forma." (p.42)A Escola e o currículo escolar são espaços onde circulam diversas narrativas sobre grupos culturais, as quais, muitas vezes, privilegiam certas identidades, ao invés de outras, ensinando determinados significados. Silva (1999) afirma que “não é preciso dizer que a educação institucionalizada e o currículo – oficial ou não – estão, por sua vez, no centro do processo de formação de identidade. O currículo, como espaço de significação, está estreitamente vinculado ao processo de formação de identidades sociais.” (p. 27).
No caso da identidade gaúcha, podemos assistir a uma determinada produção de sentidos que obtém um espaço privilegiado na constituição do campo de significação do que “é ser gaúcho”. Pode-se falar na predominância da representação do gaúcho do pampa, do meio rural, corajoso e destemido. São elementos que, segundo Jacks (1998), fazem parte do “mito do gaúcho”, o qual, conforme a autora, “engendrou um tipo, uma personalidade, que passou a identificar idealmente o gaúcho e impor-se como padrão de comportamento.” (p. 21)
É importante ressaltar aqui o papel que tem o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), criado em 1966, no sentido de ser um aglutinador destes significados presentes no chamado mito do gaúcho. O MTG coordena as ações dos Centros de Tradições Gaúchas (CTG) a ele filiados e demais entidades do gênero, realizam anualmente o Congresso Tradicionalista, coordena e dá assessoria a eventos como rodeios, festas campeiras, festivais nativistas, concursos de prendas e artísticos.
A preocupação do MTG para que as crianças aprendam, desde cedo, a maneira como se tornar gaúchos e gaúchas é latente. Barbosa Lessa, no primeiro congresso do MTG, realizado em Santa Maria no ano de 1954, defendeu a tese “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”, na qual aparecem as duas grandes questões do Tradicionalismo. Ao lado da assistência a ser dada ao homem do campo, a grande questão é a atenção a ser dada às novas gerações, pois, segundo o seu autor, o Tradicionalismo deve “operar com intensidade no setor infantil ou educacional, para que o movimento tradicionalista não desapareça com a nossa geração. É clara a preocupação com a renovação do Movimento, com a construção de novos gauchinhos e prendinhas, fato que será discutido na segunda parte desse trabalho, o qual se debruçará sobre reportagens publicadas durante Semana Farroupilha e que tratam justamente da inserção das crianças, seja via Escola ou família, no discurso do gauchismo. Dessa forma, as crianças aprendem, desde cedo como “ser” gaúcho ou gaúcha.
Autores: Letícia Fonseca Richthofen de Freitas e Rosa Maria Hessel Silveira