O Sentido e o Valor do Tradicionalismo Parte I

Autor: Barbosa Lessa

Tese aprovada pelo Primeiro Congresso Tradicionalista doRio Grande do Sul, Santa Maria, Julho de 1954.
Comentários: Embora Barbosa Lessa tenha sido um folclorista, e a maioria de seus trabalhos se concentre no resgate e interpretação de costumes históricos, o artigo intitulado " O Sentido e o Valor do Tradicionalismo" é uma elaboração sociológica sobre o tema. provavelmente seja a primeira tentativa de fundamentação sociológica do movimento.
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Na vida humana, a sociedade - mais que o indivíduo - constitui a principal força na luta pela existência. Mas, para que o grupo social funcione como unidade, é necessário que os indivíduos que o compõem possuam modos de agir e de pensar coletivamente. Isto é conseguido através da "herança social" ou da "cultura". Graças à cultura comum, os membros de uma sociedade possuem a unidade psicológica que lhes permite viverem em conjunto, com um mínimo de confusão.
A cultura, assim, tem por finalidade adaptar o indivíduo não só ao seu ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade. Toda a cultura inclui uma série de técnicas que ensinam ao indivíduo, desde a infância, a maneira como comportar-se na vida grupal. E graças à Tradição, essa cultura se transmite de uma geração a outra, capacitando sempre os novos indivíduos a uma pronta integração na vida em sociedade.

I - A DESINTEGRAÇÃO DE NOSSA SOCIEDADE

A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo um assustador processo de desintegração. Incluídas nesse panorama geral, a cultura e a sociedade de quaisquer dos povos ocidentais, necessariamente, apresentam, com maior ou menor intensidade, idêntica dissolução. É nos grandes centros urbanos que esse fenômeno se desenha mais nítido, através das estatísticas sempre crescentes de crime, divórcio, suicídio, adultério, delinqüência juvenil e outros índices de desintegração social.
Analisando tais circunstâncias, mestres da moderna Sociologia chegaram à conclusão de que problemas sociais cruciantes da atualidade são causados, ou incentivados, pelo relaxamento do controle dos costumes e noções tradicionais de cada cultura.

II - OS DOIS FATORES DE DESINTEGRAÇÃO

Sociólogos de renome afirmam que a desintegração social, característica de nossa época, é devida a dois fatores:
Primeiro: o enfraquecimento das culturas locais.
Segundo: o desaparecimento gradativo dos "Grupos Locais" comunidades transmissoras de cultura.
Analisemos, então, esses dois fatores.

A) O ENFRAQUECIMENTO DO NÚCLEO CULTURAL

A cultura de qualquer sociedade se compõe de duas partes.Há um núcleo sólido, de certa forma estável, constituído pelo PATRIMÔNIO TRADICIONAL. Nesse núcleo se concentram aqueles inúmeros hábitos, princípios morais, valores, associações e reações emocionais partilhados por TODOS os membros de determinada sociedade (como a linguagem, a indumentária típica, os princípios fundamentais de moral, etc. ou ainda, por TODOS os membros de certas categorias de indivíduos, dentro da sociedade (como as ocupações reservadas só às mulheres ou só aos homens, as reações emocionais típicas de todos os velhos ou de todas as crianças, bem como os conhecimentos técnicos reservados aos ferreiros, aos médicos, aos agricultores, etc.). Tais elementos culturais contribuem para o bem-estar da coletividade, pois o indivíduo fica sabendo como comportar-se em grupo, e qual o comportamento que pode esperar dos outros("expectativas de comportamento"). Em suma: o cerne cultural dá, aos indivíduos, a unidade psicológica essencial ao funcionamento da sociedade.
Mas, cercando o núcleo, existe uma zona fluída e instável, constituída por elementos culturais chamados, em sociologia, Alternativas, e que são traços partilhados apenas por ALGUNS indivíduos, representando diferentes reações às mesmas situações, ou diferentes técnicas para alcançar os mesmos fins. (Certa pessoa viaja a cavalo, fazendo o mesmo percurso que outra prefere realizar em carroça; certa pessoa sente-se tremendamente ofendida se alguém faz "crítica" a um defeito físico seu, enquanto outra se comporta resignadamente face a tais críticas; etc.)
É esta zona de Alternativas que permite à cultura crescer e acomodar-se aos avanços de uma civilização. Evidentemente, quanto maior for o entrechoque com culturas diversas, maior será a possibilidade de adoção de novas Alternativas, por parte dos membros de uma sociedade.
Quando a cultura de determinado povo é invadida por novos hábitos e novas idéias, duas coisas podem ocorrer:
Se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente e forte, a sociedade só tem a lucrar com o referido contato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seio aqueles traços culturais novos que, dentre muitos, realmente sejam benéficos à coletividade.
Se , porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão social é inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural, desnorteando os indivíduos, e fazendo-os titubear entre as crença e valores mais antagônicos. Quem mais sofre com essa confusão social - acentua o sociólogo Donal Pierson - são as crianças e os adolescentes, os responsáveis pela sociedade do porvir.
Crescendo nessas circunstâncias, a criança não sabe como agir, não é capaz de assumir, em seu espírito, qualquer expectativa clara de comportamento. E assim se originam, entre outros, os problemas da delinqüência juvenil, resultados de uma desintegração social.
Pois bem. Devido ao surto surpreendente do maquinismo em nossos dias, bem como da facilidade de intercâmbio cultural entre os mais diversos povos, observa-se que o núcleo das culturas locais ou regionais vai se reduzindo gradativamente, a ponto de se ver sufocado pela zona das Alternativas. E a fluidez naturalmente se acentua, à medida que as sociedades mantêm novos contatos com traços culturais diferentes ou antagônicos, introduzidos por viajantes ou imigrantes, ou difundidos por livros, imprensa, cinema, etc. Nossa civilização, antes alicerçada num núcleo sólido e coerente, transformou-se numa variedades de Alternativas, entre as quais o indivíduo tem que escolher.. Sem ampla comunidade de hábitos e de idéias, porém, os indivíduos não reagem com unidade a certos estímulos, nem podem cooperar eficientemente. Daí os conflitos de ordem moral que afligem o indivíduo, fazendo atarantar-se sem saber quais as opiniões e os valores que merecem acatamento.
Essa insegurança reflete-se imediatamente na sociedade como um todo e, consequentemente no Estado, pois, conforme ensina Ralph Linton "embora os problemas de organizar e governar Estados nunca tenham sido perfeitamente resolvidos, uma coisa parece certa: se os cidadãos tiverem interesses e culturas comuns, com a vontade unificada que daí advém, quase qualquer tipo de organização formal de governo funcionará eficientemente; mas se isso não se verificar, nenhuma elaboração e padrões formais de governo, nenhuma multiplicação de lei, produzirá um Estado eficiente ou cidadãos satisfeitos".

B) O DESAPARECIMENTO DOS "GRUPOS LOCAIS"

As duas unidades mais sociais mais importantes, como transmissoras de cultura, são a "família" e o "grupo local". Através dessas duas unidades, o indivíduo recebe, com maior intensidade, a sua "herança social".São exemplos de "grupo local", em nossa sociedade, o "vizindário" ou "pago" das populações rurais, bem como as pequenas vilas do interior, ou ainda (um exemplo do passado) os bairros com vida própria das cidades de há alguns anos atrás.
Por "grupo local" entende-se o agregado de famílias e de indivíduos avulsos que vivem juntos em certa área, compartilhando hábitos e noções comuns.Embora não tenha organização formal (como o distrito ou o município), o "grupo local" é a unidade social autêntica. O "pago", por exemplo, influencia a vida dos seus membros, estabelece limites à vida social (quais as famílias que podem ser convidadas para as festas) , mantém elevado grau de cooperação entre os indivíduos, pois todos devem se auxiliar (antigos trabalhos de puxirão) e cada qual tem consciência desse dever de auxílio mútuo. O Indivíduo conhece perfeitamente os costumes e os princípios morais instituídos pelo seu "pago"; além disso, há um conhecimento íntimo entre os membros de um mesmo "pago" (conhecem-se até os animais objetos pertencentes aos vizinhos). Todas essas circunstâncias influem para que o "grupo local" se constitua numa potente barragem para as transgressões à ordem pública ou à moral (furto, sedução, adultério, etc.). Ademais, embora não tenha um meio de reação formal(como a polícia), o "grupo local encerra grande força punitiva, através de medidas como a perda de prestígio, o ridículo, o ostracismo. Certamente já depreendemos, então, a grande importância de que se reveste o "grupo local" para assegurar a normalidade da vida comum, segundo os padrões culturais instituídos pelo grupo.
Acresce notar o seguinte: o integrar-se a um "grupo local" constitui verdadeira NECESSIDADE PSICOLÓGICA para o indivíduo normal. Este precisa de uma unidade social coesa, maior que a família, dentro da qual sinta que outros indivíduos são seus amigos, que compartilham suas idéias e hábitos. Tanto é verdade que o indivíduo se sente inseguro quando se vê só entre estranhos.Pois bem. O enfraquecimento da vida grupal - conforme acentuou Ralph Linton - é outra característica de nossa época. As unidades sociais pequenas estão gradativamente desaparecendo, e cedendo lugar às massas de indivíduos. Nas zonas rurais, os "grupos locais" ainda conservam um pouco de sua função como portadores de cultura; mas, em geral - devido ao afluxo de Alternativas - os jovens discordam dos padrões culturais antigos; acontece, porém, que a sociedade mais ampla - com a qual o jovem entra em contato por meio da imprensa, do rádio e cinema - ainda não têm padrões coerentes de vida para oferecer-lhes. Daí a insegurança que começa a notar-se em nossa sociedade rural.
Se nas zonas rurais se percebe apenas uma insegurança incipiente, apenas o relaxamento das forças do "grupo local" , o que se percebe nas cidades é a desintegração total dessas forças. A mudança de padrões culturais, em nossos dias, tem sido tão rápida que, em geral, o adulto de hoje teve sua infância condicionada à vida segundo as bases do "grupo local". Ensinaram-lhe a esperar dos seus vizinhos encorajamento e apoio moral; e quando esses vizinhos se afastam, o indivíduo se sente perdido. Ele escolhe entre muitas Alternativas, mas não dispõe de meios para estabelecer contato com outros que tenham feito, escolha semelhante.
Sem o apoio de um grupo que pense do mesmo modo, é - lhe impossível sentir-se seguro a respeito de qualquer assunto. E assim o indivíduo torna-se presa fácil de qualquer propaganda insistente, (quer seja a má propaganda, quer seja a boa propaganda).
Por isso, Ralph Linton escreveu "A cidade moderna, com sua multiplicidade de organizações de toda a espécie, dá a imagem de uma massa de indivíduos que perderam seus "grupos locais" e estão tentando, de maneira tateante, substituí-los por alguma outra coisa. De todos os lados surgem novos tipos de agrupamentos, mas até agora nada foi encontrado, que pareça capaz de assumir as principais funções do "grupo local". Ser membro do Rotary Club, por exemplo, não substitui adequadamente a posse de vizinhos e amigos tal como se verifica nos grupos locais".
CONTINUA