IV - A Elaboração da Matriz do Tradicionalismo

QUARTA PARTE DO ARTIGO:
EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: O MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO
(Ruben Oliven)

Entre 1948 e 1954 surgiram 35 novos centros de tradição gaúcha, concentrados principalmente nas áreas pastoris, mas distribuídos por praticamente todas as regiões do estado (em Porto Alegre criou-se apenas uma espécie de ‘mini CTG doméstico’). Na época, os tradicionalistas discutiam o rumo que suas entidades deveriam tomar. Existiam duas posições: a mais ‘aristocrática’ defendia maior preocupação com o ‘nível cultural’ (entendido como cultura escolarizada) dos CTGs, de modo a evitar que eles fossem apenas um lugar de entretenimento; a outra valorizava exatamente este aspecto e achava que não devia haver preconceito contra a ‘cultura popular’.
Em 1954, os centros surgidos a partir de 1948 se reuniram pela primeira vez num congresso, realizado em Santa Maria para discutir esta e outras questões. Luiz Carlos Barbosa Lesse, um dos fundadores do 35 CTG, apresentou a tese O sentido e o valor do Tradicionalismo, que se tornou a tese-matriz do Movimento Tradicionalista Gaúcho. O autor, à época com 24 anos e recém-formado em direito (profissão que não desejava exercer), se matriculara, em São Paulo, na Escola de Sociologia e Política, onde lecionava o sociólogo norte-americano Donald Pierson, (10) formado pela Universidade de Chicago e autor de Teoria e pesquisa em sociologia. Além deste livro, também era adotado O homem, publicado em 1936 pelo antropólogo norte-americano Ralph Linton. Ambos os autores estavam preocupados com os efeitos do crescimento da população, as conseqüências da urbanização e as modificações na família e nos grupos locais, problemática recorrente nas ciências sociais da época, fortemente influenciadas pelos trabalhos de Durkheim, escritos na França no século XIX. Barbosa Lessa, que considerava as aulas muito monótonas, teve que voltar ao Rio Grande do Sul alguns meses depois. Quando foi redigir atese-matriz do tradicionalismo, percebeu como os dois cientistas sociais estavam próximos desse assunto:“Nesses dois ou três meses, em 53, me deram a bibliografia básica que eu deveria adquirir,~na qual figuravam Teoria e pesquisa em sociologia, de Donald Pierson, e O homem, de Ralph Linton. Eu não continuei o curso, mas voltei ao Rio Grande do Sul em fins de 53 com, no mímino, estes dois livros (...) e fui lá prá fazenda em Piratini e me lembro que foi lá que eu li e anotei estes dois livros. Para mim, foi uma revelação. Como eu estava muito imbuído dos assuntos tradicionalistas, eu fui vendo até que ponto se encaixava naquilo que nós estávamos fazendo. Foi quando eu aprendi o conceito de sociedade, o conceito de cultura, o conceito de tradição, o conceito de visão cultural e por aí a fora. Todos aqueles conceitos básicos. Eu percebi que dava para formar uma coisa boa. Pode parecer que, a partir daí, em 54, eu tenha ao longo da vida me embrenhado em estudos de sociologia, mas confesso com toda a sinceridade que devo ter lido esses dois livros naquela época e mais o Dicionário de sociologia, da Editora Globo, que eventualmente eu consulto. Toda a minha sabedoria em ciências sociais são na parte teórica, esses três livros e não mais do que isso. (11)
Vê-se acima um bom exemplo de como o saber produzido por acadêmicos se torna senso comum. Embora não o saiba, o Movimento Tradicionalista Gaúcho é um dos maiores difusores das idéias das ciências sociais norte-americanas da década de 1940.
A tese-matriz do tradicionalismo começa enfatizando a importância da cultura, transmitida pela tradição, para que uma sociedade funcione como uma unidade. Todo o problema residiria no fato de que isso não estaria ocorrendo de forma satisfatória, já que, para Barbosa Lessa, “a cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo um assustador processo de desintegração”, especialmente nítido “nos centros urbanos (...), através das estatísticas sempre crescentes de crime, divórcio, suicídio, adultério, delinqüência juvenil e outros índices de desintegração social” (Barbosa Lessa,1979; p. 5). Dois fatores principais causariam essa desintegração: o enfraquecimento do núcleo das culturas locais e o desaparecimento gradativo da capacidade de transmissão de cultura por parte dos “grupos locais”.
Não é difícil perceber-se, no texto, a influência do pensamento social do século passado e do começo deste. As conseqüências do processo de urbanização são elaboradas indiretamente através daqueles que o autor denomina “mestres da moderna sociologia” e que podem ser caracterizados como membros da escola sociológica de Chicago. Embora o termo não apareça, descreve-se o fenômeno da anomia, enunciado por Durkheim e aplicado ao aumento populacional e à divisão social do trabalho. A ênfase na temática da desagregação, que seria acelerada pela cidade, lembra as teorias dicotômicas, ou de contraste, principalmente a teoria do continuum folk urbano, do antropólogo norte-americano Robert Redfield, que considerava a desorganização da cultura, a secularização e o individualismo como conseqüências da urbanização. A vida nas cidades enfraqueceria ou destruiria os firmes laços que, segundo ele, integravam os homens em uma sociedade rural, criando uma cultura urbana caracterizada pela fragmentação de papéis sociais e por comportamentos mais seculares e individualistas. A homogeneidade da sociedade rural, dotada de estrutura monolítica e sem ambigüidades, seria substituída nas cidades por uma estrutura social marcada pela diversidade de papéis, ações e significados. No campo, os elementos culturais seriam definidos; nas cidades, fragmentados. A cultura urbana traria então, inevitavelmente, conflito e desorganização (Oliven, 1988).
Como esse tipo de teoria, tão em voga na época, foi aplicada à realidade do Rio Grande do Sul? É interessante ver como a crise social encontra uma ‘solução’ no Tradicionalismo, já que este“visa precisamente combater os dois reconhecidos fatores de desintegração social. O fundamento cientifico deste movimento encontra-se na seguiste afirmação sociológica: ‘Qualquer sociedade poderá evitar a dissolução, enquanto for capaz de manter a integridade de seu núcleo cultural. Desajustamentos nesse núcleo produzem conflitos entre os indivíduos que compõem a sociedade, pois estes vêm a preferir valores diferentes, resultando então a perda de unidade psicológica essencial ao funcionamento eficiente de qualquer sociedade.’ Através da atividade recreativa ou esportiva que o caracteriza - sempre realçando os motivos tradicionais do Rio Grande do Sul - o Tradicionalismo procura, mais que tudo, reforçar o núcleo da cultura rio-grandense, tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo e sem apoio dentro do caos de nossa época. E, através dos Centros de Tradições Gaúchas, o Tradicionalismo procura entregar ao indivíduo uma agremiação com as mesmas características do ‘grupo local’ que ele perdeu ou teme perder: o ‘pago’. Mais que o seu pago, o pago também das gerações que o precederam.” (Barbosa Lessa, 1979, pp. 7-8)
A tese-matriz tomou posição na polêmica entre os que defendiam a “qualificação cultural” e os partidários da “massificação popular”:“O Tradicionalismo deve ser um movimento nitidamente popular, não simplesmente intelectual. É verdade que o Tradicionalismo continuará sendo compreendido, em sua finalidade última, apenas por uma minoria intelectual. Mas, para vencer, é fundamental que seja entendido e desenvolvido no próprio seio das camadas populares, isto é, nas canchas de carreiras, nos auditórios, nas radio-emissoras, nos festivais e bailes populares, nas ‘Festas do Divino’ e de ‘Navegantes’etc. Para alcançar seus fins, o Tradicionalismo serve-se do Folclore, da Sociologia, da Arte, da Literatura, do Teatro etc. Tudo isto constitui meios para que o Tradicionalismo alcance seus fins. Não se deve confundir o Tradicionalismo, que é um movimento, com o Folclore, a História, a Sociologia etc., que são ciências. Não se deve confundir o folclorista, por exemplo, com o tradicionalista; aquele é o estudioso de uma ciência, este é o soldado de um movimento. Os tradicionalistas não precisam tratar cientificamente o folclore; estarão agindo eficientemente se servirem dos estudos dos folcloristas, como base de ação, e assim reafirmarem as vivências folclóricas no próprio seio do povo” (Barbosa Lessa,1979, p. 8).
A opção feita pela tendência ‘popular’ implica a existência de divisão entre camadas populares e elite intelectual. Sintomaticamente, os membros deste último grupo são comparados a soldados, que têm como missão formular os princípios e entender o sentido do Tradicionalismo, levando-o às camadas populares, incapazes de compreender a ‘finalidade última’ do movimento, mas necessárias para que este seja forte e vitorioso. Considerados meios para que se alcancem os fins do Tradicionalismo, ciências e saberes são enquadrados em uma visão instrumental. Apesar disso, a liderança tradicionalista obviamente constitui um grupo de intelectuais, com razoável produção escrita. De certo modo, podem ser vistos como intelectuais medianos, que não possuem instâncias de consagração (no sentido dado por Bourdieu) de sua produção, como ocorre com os intélectuais ligados a universidades ou academias. Entrevistas realizadas com alguns membros dessa elite mostram que eles tentam afirmar-se como intelectuais no Rio Grande do Sul, mas enfrentam desconfiança dentro do seu próprio movimento:“Há várias alas no Tradicionalismo. Duas principais: a ala fisiológica (...) e uma ala cerebral cultural que atualmente está muito defasada, hostilizada pela ala fisiológica. Eles têm mania de chamar o pessoal que estuda de medalhões (...) Nós somos os medalhões do movimento tradicionalista (...) A qualquer momento eles nos requisitam, nos convocam, nos chamam para conferências, mas na hora dos congressos, quando eles vêem que a gente discute certos casos com eles... Como o CTG sobrevive, como o CTG ganha dinheiro, como constrói sua sede, tudo isso eles saberão te dizer, mas não pergunta a eles qualquer coisa de cultura que eles vão dizer bobagens. (12)

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Fonte: http://www.anpocs.org.br/