Conceitos básicos de sociedade e cultura

Este texto compreende sete crônicas publicadas por Barbosa Lessa no periódico "Extra-Classe", do Sindicato dos Professores do RS.As crônicas constituintes desse texto são 2000 e 2001

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Como o tempo passa correndo, bah! Parece que foi ontem que o editor Marcelo Menna Barreto, levando em conta meu gosto pela história, me fez o inesperado e honroso convite para que eu me tornasse um colaborador permanente do Extra Classe, numa nova coluna que versaria sobre Imagens do Passado. Pois lá se foram quatro anos! Quatro anos de gostoso convívio com leitores a quem não conheço pessoalmente mas que, sem dúvida, já fazem parte do lado mais positivo de minha vida.
Comecei com “A primeira escola do Rio Grande do Sul”, versando sobre o Colégio das Servas de Maria, fundado em 1778 pelo governador José Marcelino. Redação e leitura fáceis, descompromissadas, pelo fato de tanto eu quanto o leitor sermos meros espectadores de um episódio ocorrido há mais de dois séculos. A história é algo que já aconteceu.
Na última crônica, porém, houve uma virada que até me surpreendeu. Ao versar sobre o rico cabedal de provérbios que nos foram legados pelas gerações anteriores, grande parte dos quais ainda vigentes, tanto eu quanto o leitor fomos induzidos a tomar um posicionamento pró ou contra os ensinamentos pretendidos pela cultura popular. Não podemos ser meros espectadores. A cultura é algo que está acontecendo em nosso dia-a-dia.
Então me dei conta de que não tem havido preocupação por transmitir ao indivíduo comum um mínimo de conceitos básicos que evidenciam o papel que ele desempenha em determinada cultura. Se ele já aprendeu o ABC e as quatro operações, já está preparado para o que der e vier. Mas não é assim, não. Por isso, peço licença ao Extra Classe para ir preenchendo meu espaço com alguns tópicos fundamentais para melhor compreensão do próprio passado. Sei que os doutos, os eruditos, até podem se rir do primarismo de minhas “lições”. Mas também sei que muita gente boa poderá exclamar “ah é? e eu que não sabia!”
Começo me valendo da autoridade de mestre Emílio Willems para definir Sociedade: “Conjunto relativamente complexo de indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades, permanentemente associados e equipados de padrões culturais comuns, próprios para garantir a continuidade do todo e a realização de seus ideais”. É isso aí.
O homem, ao nascer, traz consigo uma herança física, isto é, uma série de caracteres genéticos e um comportamento individual instintivo que o tornam um animal específico, diferente dos outros animais. Mas ele também irá receber uma herança social, isto é, uma série de símbolos, idéias, atitudes, equipamentos e técnicas que irão determinar o seu comportamento dentro do grupo social a que pertence. (continua no próximo número)
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Cultura é tudo aquilo que, não sendo estrutura biológica nem comportamento instintivo, se acrescenta à herança física do indivíduo. Por exemplo: a criança começa emitindo vagidos e outros sons rudimentares, até que esses sons se transformem em linguagem articulada, com significados precisos; e então a Língua já será expressão cultural. Cultura também é tudo aquilo que o homem acrescenta à natureza, operando sobre o ambiente que o cerca. Por exemplo: na mata há galhos, folhas, raízes, cipós; quando o índio pega de um galho de guatambu e o retesa com cipós, a flecha já será uma expressão cultural.
Cultura e Sociedade são reciprocamente dependentes. É a posse de uma Cultura que dá à sociedade sua unidade psicológica e permite que os indivíduos vivam em conjunto com um mínimo de ambigüidades. E é a Sociedade, por seu comportamento coletivo, que dá à cultura uma manifestação expressa, objetiva, assimilável pelo indivíduo e transmissível de geração a geração.
Para fins puramente conceptuais, podemos colocar de um lado a cultura material, ergológica, e, de outro, a cultura imaterial. A primeira, que se identifica com o conceito de Civilização, é representada pelos equipamentos, artefatos e técnicas de que o grupo social se serve para atuar sobre a natureza. A segunda se constitui num sistema de símbolos, idéias, atitudes, reações emocionais condicionadas e maneiras socialmente padronizadas.Na base disso tudo está a comunicação, que é o processo pelo qual o ser humano – originalmente uma unidade física – se integra a uma unidade maior, a comunidade, e o processo pelo qual se transmitem numa sociedade, as idéias, sentimentos, estruturas sociais, bens e mercadorias.
A comunicação seria a coisa mais fácil deste mundo se não houvesse, para complicá-la, a competição – a começar pela competição ecológica, que é a disputa dos recursos naturais pelos seres vivos. Mas a cultura brasileira não ignora o fenômeno, e tanto assim que já sacramentou um provérbio: “Quem não se comunica, se trumbica”.
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Mesmo que não tenha conhecimento disso, cada cidadão ou cidadã faz parte de uma Sociedade e de uma Cultura, que evoluem para cá ou para lá de acordo com a votação diária (e geralmente inconsciente) de todo o eleitorado constituinte. Para que a eleição se torne mais clara é que vimos arrolando alguns conceitos básicos que influem diretamente no exercício da cidadania.Já dissemos que Comunicação é o processo pelo qual idéias, sentimentos, bens e mercadorias se transmitem de indivíduo para indivíduo, permitindo que o ser humano – originalmente uma unidade física – se integre a uma unidade maior, que é a comunidade.
Agora nos referimos à difusão, que é o processo pelo qual os elementos culturais se propagam dentro da comunidade em que tiveram origem, ou, fora, em sociedades culturalmente diferentes. Contato cultural é a relação estabelecida por tais grupos ou sociedades. Conflito cultural é a incompatibilidade entre valores culturais quando ocorre o contato.
Acomodação (antítese da competição) é todo e qualquer processo que conduz à cessação de conflitos. Aculturação significa as mudanças ocorridas na cultura de dois ou mais grupos quando postos em contato direto e contínuo. Desintegração é a desarticulação de padrões de uma determinada cultura, motivada pela introdução de elementos culturais antagônicos, incompatíveis com a ordem pré-existente. Reintegração é a possível fase que se segue ao conflito e à desintegração, podendo implicar no obscurecimento total ou parcial da fisionomia anterior, ou na fusão de certa parte de seus elementos em uma configuração nova.
Tradição (do latim traditio) significa a entrega de algo, sendo em tal sentido adotada pela jurisprudência para caracterizar a concreta passagem de um bem à propriedade de outrém, como ocorre numa promessa de compra e venda ou numa herança norteada pelo testamento do finado. Com um leve sentido simbólico, em nossa temática ela significa a entrega da cultura de uma determinada geração à geração subseqüente.
A atitude tradicionalista tende a valorizar a herança social transmitida pelos antepassados, com menosprezo pelas novidades ainda não sancionadas pela experiência. Em contraste com tal postura, a atitude consumista tende a valorizar e consumir, imediatamente, renovados bens e renovadas idéias, com menosprezo pelos critérios do passado.
Em qual categoria você acha que se situa? É tradicionalista? Consumista? Ou prefere votar em branco, na eleição cultural, deixando a coisa rolar para ver como é que fica?
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Desde o alvorecer da humanidade, durante milênios, e ainda hoje, boa parte da cultura é feita e transmitida espontaneamente, por assim dizer instintivamente; e, no tocante, à cultura material, ergológica, utilizam-se os próprios meios fornecidos pela natureza, ou instrumentos rudimentares ao alcance de qualquer um. É mínima a sofisticação tecnológica. Os problemas são resolvidos à base da tradição, transmitida de geração a geração pela família e pelo grupo local.
A transmissão de ensinamentos se faz no dia-a-dia, não existindo nenhuma categoria profissional que assuma conscientemente a missão de ensinar. As especialidades ocupacionais são transmitidas naturalmente pelas mulheres mais velhas às mais jovens, pelos velhos guerreiros aos principiantes, pelos experimentados caçadores aos calouros, e assim por diante. Todos ensinam, naquelas áreas de sua competência. Daí resultando uma espécie de cultura comunitária, a que William Thoms deu o nome de “folk-lore”, de difícil tradução para o português, algo assim como “sabedoria do povo”. Em sua trajetória ao longo dos anos o “folk-lore” tem se expressado fundamentalmente através da linguagem oral e, freqüentemente, vale-se de ensinamentos concisos – os provérbios – e de construções teóricas super-compactas, capazes de serem expressas por uma ou duas palavras – os mitos.
Na cultura espontânea, ou folk, a maioria das pessoas sobrevive manipulando coisas: a flecha, o anzol, a enxada, o tear, a agulha, etc. O artesão se caracteriza como produtor de coisas úteis – que podem ser, também, belas. Seu sistema de trabalho, manual, aproveita matéria-prima gratuita ou de pequeno valor pecuniário. Uma única pessoa, quando muito auxiliada por aprendizes, realiza o trabalho do princípio ao fim e cada peça produzida resulta única, reveladora de qualidades nitidamente pessoais.
Neste estágio – quando ainda não apareceu uma instituição especificamente voltada para a transmissão de ensinamentos – pode-se dizer que toda a educação é “folclórica”, ou todo o folclore é “educacional”.
Já então podemos conceituar Educação em seu sentido lato: é o processo pelo qual o indivíduo adquire, pela aprendizagem, os hábitos que o capacitam a viver de acordo com os padrões de uma determinada sociedade. Tal aprendizagem começa na primeira infância e se vai pela vida afora. A sabedoria popular já o disse: “Vivendo e aprendendo...” Mas a explicação dos fenômenos da natureza e da sociedade ainda é modesta, resultando na proeminência de uma área ainda difusa onde predominam as forças sobrenaturais. Os mitos, em tal circunstância, serão arquétipos acima do homem, no olimpo dos deuses ou configurados nas expressões violentas da natureza.
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Historicamente, a Cultura Cultivada surgiu de minorias privilegiadas que, tendo já superado o nível de produção para a simples sobrevivência, podiam agora entreter-se em exercícios de espírito. Surgiu com os papiros dos sacerdotes do antigo Egito, com os desenhos dos primeiros geômetras, e ganhou força quando instituições como a Igreja ou a Escola tomaram a si a tarefa consciente de transmitir conhecimentos de cunho humanístico, isto é, de valorização do ser humano. Através de mensagens desenhadas, pôde uma geração transmitir seus conhecimentos à geração seguinte sem a necessidade do contato pessoal.
A partir da escrita fonética, imitando os sons da fala humana, e dos tipos móveis de Gutenberg, reproduzindo-os em muitas cópias, a comunicação entra num ritmo espantoso, rompe-se a delimitação de territórios culturais, torna-se mais intenso o contato entre culturas diversas. O indivíduo letrado desgarra-se do grupo local a que pertence e, a cada novo livro que lê, há uma nova alternativa proposta ao seu universo de conhecimentos. A experiência do velho é contestada pelo jovem pesquisador, a ebulição espiritual descortina novos problemas e a inteligência busca resolvê-los.
Se a Cultura Espontânea manipulava, principalmente, coisas, já a Cultura Cultivada passa a manipular, cada ez mais, símbolos – a começar pelas letras ou signos de comunicação escrita. A divisão do trabalho, crescente, vai restringindo o núcleo de conhecimentos comuns a todos e vai multiplicando o segmento das especialidades. Surge a Escola como grande veículo de comunicação social. E a Educação, agora em sentido restrito, passa a ser o processo pelo qual a sociedade institui mecanismos para transmitir, à criança e ao jovem, os padrões de comportamento e o conhecimento das técnicas e ciências, sob regras pedagógicas expressas.
A educação formal, por sua própria essência, ignora a cultura folk, e toda sua sistemática consiste em ir afastando a criança e o adolescente, cada vez mais, dos padrões da sociedade espontânea. De tempos em tempos o professor põe à prova se o aluno já se afastou suficientemente: se este vence tal prova, passa; se não, roda, até aprender. E assim a sociedade vai se dividindo em fragmentos hierarquizados de acordo com a soma de conhecimentos formalmente adquiridos: pré-escolar, primeiro grau, segundo grau, etc. O status é dado pelo respectivo diploma. A liderança política da nação é assumida pelos bacharéis. E o analfabeto, coitado, nem sequer tinha direito a voto: era castrado em sua própria cidadania.
Mas no frigir dos ovos, sente-se que tais tensões causaram um extraordinário bem à Nação.
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Relembro a definição de Sociedade, que já lhes repassei, servindo-me do mestre Emilio Willems: “Conjunto de indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades, permanentemente associados e equipados de padrões culturais comuns, próprios para garantir a continuidade de todo e a realização de seus ideais.” Esses padrões culturais comuns a todos, encontráveis mesmo nas tribos mais primitivas, são tecnicamente chamados de Universais. São a língua materna, a aparência das moradias, as peças dos artesãos produzindo coisas úteis, o comportamento diante dos altares consagrados aos deuses, etc. E cumpre fazer um comentário acerca de “todas as idades”. Não havia um estágio jovem na evolução etária do indivíduo. A criança era livre e irresponsável até o momento em que – por determinação fisiológica – se via enfrentando os “ritos de passagem” e instantaneamente transferida para a categoria de adulto. Por outro lado, reconhecia-se um estágio posterior à velhice: a vida na morte. Os mortos eram convidados para as cerimônias tribais, intercediam junto aos deuses, davam conselhos, enfim animavam todos os rituais de magia.

Além dos Universais, havia as Especialidades, compartilhadas por todos os indivíduos de uma mesma categoria. Por exemplo, os conhecimentos práticos reservados às mulheres no tocante aos cuidados das crianças e ao preparo de alimentos. Universais e Especialidades formavam o núcleo, coeso, do grupo local. As normas eram transmitidas com clareza pela Família, ditadas pela Tradição e quase sempre apoiadas pelos santos e outras super-entidades imateriais. E assim se completava o panorama da Cultura Espontânea.
Ao ocorrer o aparecimento da escrita fonética (imitando os sons da fala humana) e o impacto dos tipos móveis de Gutenberg imprimindo cópias e mais cópias de determinada mensagem, o panorama se modificou profundamente. A principal fonte de comunicação se transferia da família para a Escola. O indivíduo letrado desgarrava-se do grupo local a que pertencia e, a cada novo livro lido, novas Alternativas de comportamento iam sendo sugeridas para gravitarem em torno dos Universais e Especialidades. Os mitos, antes pertencentes a um mundo imaginário, passaram a ser figuras de carne e osso: os heróis nacionais. Ao lado do artesão, produtor de coisas úteis, foi ganhando aplauso o artista, produtor de coisas belas. E fortes aplausos para o professor, o inventor, o escritor, o orador, levaram em frente a Cultura Cultivada. Em que o pobre do analfabeto só valia pela força animal de seus braços.
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A maior revolução ainda estava por chegar: a Cultura de Massa. Ela evoluiu da imprensa para o rádio e chegou à gravação de discos, aos programas de rádio, às telenovelas, ao telefone celular. Lado a lado, o analfabeto e o doutor aplaudiram a “novela das oito”. Se, antes, a Sociedade Espontânea manipulava objetos e a Sociedade Cultivada difundia símbolos, já agora a Sociedade de Consumo – fruto e fator da Cultura de Massa – manipulava mercadorias, bens comercializáveis. Evoluindo do campo artesanal, o operário industrial se põe a serviço do empresário e promete-lhe auferição de bons lucros. Mas o empresário não depende exclusivamente do trabalhador: ali está a seu lado o profissional de Marketing, realizando pesquisas e indicando quais as mais promissoras fatias do mercado consumidor. E então é redescoberto o falecido jovem! Numericamente muito expressivo, mas já sem o apoio da Família e quase perdendo o apoio da Escola para a escolha das melhores Alternativas. As façanhas dos heróis nacionais já não o comovem, como também não o comovem os rituais de adoração dos deuses. Quem arranca suspiros de veneração, agora, são os heróis da Cultura de Massa: atores de televisão, craques de futebol, sensacionais cantores, belas modelos lançando novidades, e assim por diante. E se o jovem quiser um contato pessoal com eles, não há problema: ali está a Internet inteiramente à disposição.Como qualquer outro mortal dos dias de hoje, guardo em meu ser social um tantinho da Cultura Espontânea, apego-me ao que me foi ensinado pela Cultura Cultivada e, no fundo, cada vez mais admiro as proezas das Cultura de Massa. Mas tenho passado por surpresas de tontear. Há cerca de vinte dias encontrei um jovem amigo, que me dispensa sincera afeição, e ele me informou que estava disposto a pedir demissão do emprego que eu lhe havia conseguido. Com seriedade, eu lhe disse: “Pensa bem, Fulano. Conheço por aí muito engenheiro, advogado, até médico, que anda matando cachorro a grito e não consegue emprego.” E ele me arrasou ironicamente: “Quem mandou eles estudarem? Agora, agüentem...”
Autor: Barbosa Lessa