O Rio Grande do Sul e o Brasil: Uma Relação Controvertida (Parte I)

O Rio Grande do Sul é geralmente considerado como ocupando uma posição singular em relação ao Brasil. Isto se deveria às suas características geográficas, à sua posição estratégica, à forma de seu povoamento, à sua economia, e ao modo pelo qual se insere na história nacional. Apesar do Estado ter uma grande diferenciação interna (do ponto de vista geográfico, étnico, econômico e de sua colonização), ele é freqüentemente contraposto como um todo ao resto do País, com o qual manteria uma relação especial, a ponto de ser às vezes chamado jocosamente por outros brasileiros de "este país vizinho e amigo do Sul".
Historicamente, um tema recorrente na relação do Rio Grande do Sul com o resto do Brasil é justamente a tensão entre autonomia e integração. A ênfase das peculiaridades do estado e a simultânea afirmação de seu pertencimento ao Brasil constitui um dos principais suportes da construção social da identidade gaúcha que é constantemente evocada, atualizada e reposta (Oliven, 1984).
Primeiro haveria o que é chamado de "o isolamento geográfico do Rio Grande do Sul" e que seria responsável por sermos "um todo separado do mundo pelos areais litorâneos, pelos rios, pelas serras e pelas selvas" (Prunes, 1962, p. 143). A natureza, ao mesmo tempo que nos teria premiado com um espaço físico dos mais favorecidos e benéfico às atividades humanas, nos teria contemplado com uma posição de difícil acesso, filhando-nos no Continente de São Pedro e fazendo com que este ficasse isolado por dois séculos do Brasil.
A esta peculiaridade geográfica somar-se-ia uma história sui generis. Ela inicia com uma integração tardia ao resto do País. Assim, embora descoberto no começo do século XVI, o Rio Grande do Sul só começa a se articular às atividades econômicas do Brasil colonial mais de um século depois, com a preia do gado xucro cujo objetivo era a exportação de couro para a Europa, que era feita através de Buenos Aires ou Sacramento. É porém no final do século XVII que estes rebanhos ganham importância a nível nacional pois passam a ter um mercado interno na florescente mineração da zona das Gerais, o que estimula paulistas e lagunistas a virem prear o gado xucro existente no Rio Grande do Sul e a levá-lo à área de mineração.
O objetivo da Coroa portuguesa era, entretanto, o de povoar as terras que iam do sul de São Vicente até a Colônia de Sacramento (fundada por ela em 1680) e neste sentido o Rio Grande do Sul desempenhava "uma função estratégica, como ponto de apoio para a conservação do domínio luso no Prata" (Pesavento, 1980, p. 13). Isto fez com que, no começo do século XVIII, a Coroa iniciasse a distribuição de sesmarias aos tropeiros que se sedentarizaram e aos militares que se afazendaram, criando-se assim as estâncias de gado. Os conflitos militares em torno da Colônia de Sacramento e as disputas relativas à delimitação de fronteiras significaram uma crescente militarização da região, que em 1760 foi elevada à condição de capitania com o nome de Capitania do Rio Grande de São Pedro.
A posição estratégica do Rio Grande do Sul faz com que ele seja visto como uma área limítrofe, que estaria nas margens do Brasil e que poderia tanto fazer parte dele como de outros países, dependendo do resultado das forças históricas em jogo. Respondendo a uma escritora nordestina que considerava os gaúchos acastelhanados e pertencendo mais à órbita platina do que à brasileira, Érico Veríssimo, o grande romancista do Rio Grande do Sul, assim definiu esta situação de liminaridade:
"Somos uma fronteira. No século XVIII, quando soldados de Portugal e Espanha disputavam a posse definitiva deste então ‘imenso deserto’, tivemos de fazer a nossa opção: ficar com os portugueses ou com os castelhanos. Pagamos um pesado tributo de sofrimento e sangue para continuar deste lado da fronteira meridional do Brasil. Como pode você acusar-nos de espanholismo? Fomos desde os tempos coloniais até o fim do século um território cronicamente conflagrado. Em setenta e sete anos tivemos doze conflitos armados, contadas as revoluções. Vivíamos permanentemente em pé de guerra. Nossas mulheres raramente despiam o luto. Pense nas duras atividades da vida campeira ─ alçar, domar e marcar potros, conduzir tropas, sair da faina diária quebrando a geada nas madrugadas de inverno ─ e você compreenderá por que a virilidade passou a ser a qualidade mais exigida e apreciada do gaúcho. Esse tipo de vida é responsável pelas tendências algo impetuosas que ficaram no inconsciente coletivo deste povo, e explica a nossa rudeza, a nossa às vezes desconcertante franqueza, o nosso hábito de falar alto, como quem grita ordens, dando não raro aos outros a impressão de que vivemos num permanente estado de cavalaria. A verdade, porém, é que nenhum dos heróis autênticos do Rio Grande que conheci, jamais `proseou', jamais se gabou de qualquer ato de bravura seu. Os meus coestaduanos que, depois da vitória da Revolução de 1930, se tocaram para o Rio, fantasiados, e amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco ─ esses não eram gaúchos legítimos, mas paródias de opereta" (Veríssimo, 1969, p. 3-4).
Nesta citação, rico Veríssimo evoca elementos que são recorrentes no discurso gaúcho. O primeiro é o caráter de fronteira de nosso estado. O segundo é a escolha: o Rio Grande preferiu fazer parte do Brasil quando poderia ter optado por pertencer ao antigo Império espanhol. O terceiro é o alto preço que pagamos por esta opção e que é representado pelas guerras em que o estado esteve envolvido e pela necessidade de se insurgir contra o governo central, quando o Rio Grande do Sul se sente injustiçado; ou de intervir na política nacional em momentos de crise. O quarto elemento é a existência de um tipo social específico ─ o gaúcho ─ marcado pela bravura que é exigida do homem ao lidar com as forças da natureza e a árdua vida campeira. Finalmente, o quinto elemento toca na questão da autenticidade de costumes e comportamentos gaúchos.
O que se depreende deste conjunto de elementos é um clima de adversidades que os gaúchos são constantemente obrigados a enfrentar. A necessidade de garantir fronteiras, dominar a natureza, rebelar-se contra os desmandos do governo central, além dos conflitos internos do próprio estado, ajudariam a explicar o caráter um tanto fogoso que já teria se incorporado ao inconsciente coletivo gaúcho.
As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a construção de uma série de representações em torno dele, que acabam adquirindo uma força quase mítica, que as projeta até nossos dias e as fazem informar a ação e criar práticas no presente.
Apesar da diversidade interna do estado, a ponto de um autor falar em "doze Rio Grandes" (Barbosa Lessa, 1981), a tradição e a historiografia regional (2) tendem a representar seu habitante através de um único tipo social: o gaúcho. Embora brasileiro, ele seria muito distinto de outros tipos sociais do País, guardando às vezes mais proximidade com seu homônimo da Argentina e do Uruguai. Na construção social da identidade do gaúcho brasileiro. há uma referência constante a elementos que evocam um passado glorioso no qual se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em vastos campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a lealdade, a honra etc.
Mas a figura do gaúcho, tal como a conhecemos, sofreu um longo processo de elaboração cultural até ter o atual significado gentílico de habitante do estado do Rio Grande do Sul. Traçando a história da palavra gaúcho, Augusto Meyer mostrou que ela não teve sempre o significado heróico que adquiriu na literatura e na historiografia regional. No período colonial o habitante do Rio Grande era chamado de guasca e depois de gaudério, este último termo possuindo um sentido pejorativo e referindo-se aos aventureiros paulistas que tinham desertado das tropas regulares e adotado a vida rude dos coureadores e ladrões de gado. Tratava-se de vagabundos errantes e contrabandistas de gado numa região onde a fronteira era bastante móvel em função dos conflitos entre Portugal e Espanha. No final do século XVIII eles são chamados de gaúchos, vocábulo que tem a mesma conotação pejorativa até meados do século XIX quando, com a organização da estância, passa a significar o peão e o guerreiro com um sentido encomiástico (Meyer, 1957).
O que ocorreu foi uma ressemantização do termo, através do qual um tipo social que era considerado desviante e marginal foi apropriado, reelaborado e adquiriu um novo significado positivo, sendo transformado em símbolo de identidade regional (v. Oliven, 1982). Chaves argumenta que, "à medida que foi desfigurado das origens, o gaúcho também foi nobilitado. Nobilitou-o esta perspectiva senhorial dos grandes proprietários rurais aos quais interessava diretamente estabelecer a identidade entre o peão e o soldado, atribuindo-lhe uma aura heróica. Nobilitou-o, logo adiante, a palavra de historiadores, fazendo-o protagonista duma epopéia brasílica, que vai das Guerras Platinas à Campanha do Paraguai, passando pela Revolução Farroupilha de 1835. "Trata-se essencialmente de um fenômeno ideológico o processo de construção do gaúcho como campeador e guerreiro, inserindo-o num espaço histórico onde os atributos de coragem, virilidade, argúcia e mobilidade são exigidos a todo momento, transportando-o ao plano do mito. E não há caso em que transpareça tão claramente a vitória da ideologia" (Chaves, 1983).
As representações sobre o gaúcho, que já integram o senso comum, se fazem notar desde os relatos de viajantes estrangeiros como Saint-Hilaire e Arsène Isabelle. Elas também estão presentes numa vasta tradição literária que tem como matriz o livro O Gaúcho, publicado em 1870, no apogeu do romantismo, por José de Alencar, autor que nunca tendo posto os pés no Rio Grande do Sul vai idealizar e mitificar este tipo social chamando-o de "centauro dos pampas".
Numa perspectiva sociológica, o pensador fluminense Oliveira Vianna em seu clássico Populações Meridionais do Brasil, ao analisar o campeador rio-grandense lhe atribuiu características especiais e uma mentalidade específica que o distinguiriam do tipo social dos sertões nordestinos e o das matas do centro-sul do País. As diferenças do gaúcho em relação a outros tipos sociais seriam causadas pelo meio ambiente e pela superioridade política provinda da experiência de guerra: "O gaúcho é socialmente um produto do pampa, como politicamente é um produto da guerra". Assim, a experiência de guerra teria dado à elite gaúcha "a capacidade de mando e a prática da organização de grandes massas humanas", ao mesmo tempo que "desenvolveu na consciência daquela gente, além da interdependência entre a vida da sociedade e a vida privada familiar... também o sentimento e o valor do governo como órgão supremo dos interesses coletivos".
Aquele autor é também o mais elaborado teórico da chamada "democracia sulina", quando argumenta que no Rio Grande do Sul havia uma "tradição de igualdade e familiaridade entre patrões e servidores, essa interpenetração das duas classes rurais ─ a alta e a baixa, a senhorial e a servil; fenômeno este que constitui, na sua substancialidade, o espírito da democracia rio-grandense". Um elemento decisivo para a criação da "democracia social" no Rio Grande do Sul seria o meio ambiente, responsável pela leveza do trabalho: "O pampa ─ com sua amplitude, o seu desafogo, a sua horizontalidade, a sua vegetação graminosa ─ faz do trabalho pastoril um verdadeiro esporte" (Oliveira Vianna, 1974, pp. 195, 159, 168-9, 195-6 e 199-200) (3).
À idéia de democracia social somar-se-ia a da democracia racial que baseia-se numa citação clássica de Saint-Hilaire quando o sábio francês afirmou que "não há, creio, em todo o Brasil, um lugar onde os escravos sejam mais felizes que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos, mantêm-se próximos deles e tratam-nos com menos desprezo. O escravo come à vontade, não é mal vestido, não anda a pé e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos, cousa mais sadia que fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais que os cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos" (Saint-Hilaire,. 1974, p. 47) (4). Em outro trecho de seu livro, entretanto, Saint-Hilaire relativiza esta assertiva: "Afirmei que nesta Capitania os negros são tratados com bondade e que os brancos com eles se familiarizam, mais que em outros pontos do País. Referia-me aos escravos das estâncias, que são em pequeno número; nas xarqueadas a coisa muda de figura, porque sendo os negros em grande número e cheios de vícios, trazidos da Capital, torna-se necessário tratá-los com mais energia" (SaintHilaire, 1974, p. 73).
O argumento dos defensores da "democracia racial" de que no Rio Grande do Sul a vida dos escravos era amena, quando comparada com a existente em outros lugares, repousa numa confusão entre o escravo das estâncias (que estava presente no estado desde sua colonização, não fazendo entretanto parte do processo produtivo) e o escravo das charqueadas. Isto propiciou uma visão "idealizada" das condições de vida do negro gaúcho. Examinando a ideologia da "democracia racial" e da "democracia rural gaúcha", Cardoso argumentou que "como ideologia, além de não corresponder às condições reais de existência social, é formalmente contraditória nela mesma: supõe uma relação entre senhores, escravos, agregados, peões, que é ao mesmo tempo autocrática e democrática, senhorial e igualitária" (Cardoso, 1977, p. 115).
Neste processo de glorificação do gaúcho, que faz parte da construção social de sua identidade, torna-se necessário distingui-lo do gaúcho de outros países. Assim, há mais de sessenta anos, procurando traçar as aproximações entre o gaúcho rio-grandense e o gaúcho platino, Jorge Salis Goulart afirmou que:
"O `gaúcho mato' é uma criação da pampa platina. Esse tipo `sui generis' que briga tão-somente pelo gosto de brigar, eterno inimigo da sociedade e da justiça, guerreiro indomável e aventureiro, dominado pelo vício do jogo e pelo amor da luta cruenta, herói anônimo do Pampa, é peculiar às populações castelhanas. O rio-grandense não. É sóbrio, é ordeiro, embora nunca tema afrontar o inimigo para que seja mantida a sua organização social. A longa série de fatos cruentos que a história do Prata registra é completamente alheia à história do Rio Grande do Sul... O gaúcho platino é um rebelado contra a sociedade e as leis que a dominam. O caudilho que chega à suprema governança não visa ao bem público porque ele o não compreende. Todas as prerrogativas estão na sua personalidade de autocrata rude e bronco. O rio-grandense é o contrário. Em 35 ele se rebela para dar à sua terra um governo mais seguro, mais de acordo com as necessidades do seu povo" (Goulart, 1985, pp. 108-109).
CONTINUA.......