II - O Surgimento dos Centros Tradicionais no Pós Guerra

SEGUNDA PARTE DO TEXTO:

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: O MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO
(Ruben Oliven)
Em 1948 surgiu em Porto Alegre o 35 CTG, primeiro centro de tradições gaúchas, cujo nome evocava a Revolução Farroupilha deflagrada em 1835. Fundado principalmente por estudantes secundários oriundos das áreas pastoris, onde se praticava a pecuária em grandes latifúndios, ele serviu de modelo a centenas de centros semelhantes, que se espalharam pelo Rio Grande do Sul e por outros estados.
Um ano antes de criarem o ‘35’, os mesmos jovens haviam fundado o departamento de tradições gaúchas do grêmio estudantil do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, na época considerado colégio-padrão. Entre 7 e 20 de setembro de 1947, organizaram a primeira Ronda Gaúcha, que deu origem à atual Semana Farroupilha. À meia-noite de 7 de setembro, antes da extinção do fogo simbólico da Pira da Pátria, tomaram ali uma centelha que, transportada pára o saguão do colégio, serviu para acender a ‘Chama Crioula’ (no Rio Grande do Sul, usa-se a expressão crioulo para designar o que é nativo, original e puro, ou seja, natural do próprio estado).
No mesmo ano, a Liga de Defesa Nacional incluiu nos festejos da Semana da Pátria o traslado dos restos mortais do general David Canabarro, segunda maior liderança da Revolução Farroupilha, de Santana do Livramento (onde ele fora estancieiro) para o panteão do cemitério da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Porto Alegre. Montados em cavalos cedidos pela Brigada Militar, oito desses jovens organizaram uma guarda de honra que acompanhou o trajeto dos restos do herói farroupilha. Esse episódio aparece, em vários depoimentos de tradicionalistas, como um ritual de passagem fundamental e como mito de criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho.
Barbosa Lessa, um dos fundadores do movimento, conta que, vindo a Porto Alegre para estudar, quis visitar o monumento com a estátua eqüestre de Bento Gonçalves, o maior herói farroupilha, alvo de sua admiração:“Fiz umas cinco perguntas ou seis. Para minha surpresa, ninguém sabia onde é que ficava o monumento. Até que me disseram: ‘Ah, fica na avenida João Pessoa’. Era perto de onde eu estudava. Fui ao monumento - isto foi em 1945 - e encontrei o monumento muito abandonado. Então eu disse ao Bento Gonçalves, num diálogo com ele: ‘Velho, tu estás muito abandonado, muito esquecido, mas eu prometo que ainda vou fazer tu seres recordado. No dia 20 de setembro muita gente vai desfilar aqui para te homeagear.” (2)Mais adiante, o mesmo Barbosa Lessa relata que, dois anos mais tarde, em 5 de setembro de 1947, “estava em casa, pela manhã, lendo o jornal, e vi que chegavam restos mortais de David Canabarro. Então, eu saí correndo. Ainda dava tempo de chegar d solenidade, ali na praça da Alfândega, aplaudir aquela solenidade da chegada dos restos mortais do David Canabarro. E, para minha surpresa, vi alguns rapazes da minha idade, a cavalo, vestidos d gaúcha, fazendo parte da solenidade da Liga de Defesa Nacional, discurso e tal. Quando aquele grupo se dispersou, corri atrás do grupo e perguntei para aquele que me pareceu o chefe daquela turma, um cara muito magro, bigodudo: ‘Quem são vocês? Como é que eu posso me entrosar com vocês?’ E aí disse o cara: ‘Tu podes me procurar. Eu estudo no Júlio de Castilhos’. Eu disse: ‘Pó, eu também estudo láW. ‘Mas eu estudo d noite’, disse ele. ‘Eu também estudo d noite. Como é teu nome?”Paixão [CortesJ’. ‘Eu, Lessa’ .”(3)Entrevistas realizadas com alguns desses fundadores, que continuam a ser figuras proeminentes no Movimento Tradicionalista Gaúcho, revelam que a maioria deles era, formada por descendentes de pequenos proprietários rurais de área pastoris onde predominava o ‘ latifúndio, ou de estancieiros em processo de descenso social. Sua presença na capital estava ligada aos estudos. Embora cultuassem valores ligados ao latifúndio, eles não pertenciam à oligarquia rural. Além disso, o movimento buscava recuperar valores rurais do passado, mas sua base estava, desde a origem, na cidade. Como observa um de seus intelectuais, ex-patrão (depois veremos o sentido do termo) do 35 CTG: “(...) há, queiramos ou não, uma aura de saudade envolvendo o tradicionalismo. Ninguém sente saudade do que está perto. A saudade - e o Tradicionalismo - exigem distanciamento, tanto que este é um fenômeno tipicamente citadino, não do campo, urbano e não rural” (Fagundes, 1987, p. 13).
A capital era, ao mesmo tempo, ameaça e desafio. Nela, esses jovens moravam em casas de parentes, trabalhavam durante o dia e estudavam à noite. Na descrição de um deles: “Porto Alegre nos fascinava, com seus anúncios luminosos a gás neon. Hollywood nos estonteava com a tecnolorida beleza de Gene Tierney e as aventuras de Tyrone Power, as lojas de discos punham em nossos ouvidos as irresistíveis harmonias de Harry James e Tommie Dorsey, mas, no fundo, preferíamos a segurança que somente nosso pago sabia proporcionar, na solidariedade dos amigos, na alegria de encilhar um pingo e no singelo convívio das rodas de galpão. Não nos conhecíamos uns aos outros, mas devíamos andar nos pechando pelos labirintos da capital. Nunca tínhamos ouvido falar nas anteriores experiências nativistas - dos anos 60, dos anos 90 e dos anos 20 - e precisávamos escolher nosso rumo por nós mesmos. Quando 0 existencialismo de Jean-Paul Sartre pôs diante de nós o derrotismo e a descrença, instintivamente nos agarramos a nossos rudes antepassados para uma afirmação de vitória e fé. Por essa época, o Rio Grande andava bastante esquecido de si mesmo, e a própria bandeira estadual permanecia queimada e escondida desde novembro de 1937. Resquícios do Estado Novo e de seu sufoco centralizador” (Barbosa Lessa,1985, pp. 56-57).
O depoimento é valioso. Aparece nele, em primeiro lugar, o elemento cidade. Para os padrões atuais, a Porto Alegre dos anos 40 era pequena e pacata, mas experimentava rápido crescimento: sua população aumentou em 45% entre 1940 e 1950, passando de 272 mil para 394 mil habitantes. Já era vista como metrópole, cheia de labirintos e de símbolos de progresso, como os anúncios de neon. Em segundo lugar, aparece o grande impacto da indústria cultural norte-americana, com seus discos e filmes e os ídolos a eles associados.
Finalmente, filosofias céticas oriundas da Europa freqüentavam o ambiente, questionando o sentido da vida e do mundo. Tudo isso era fascinante e ameaçador, despertando nesses jovens interioranos a vontade de buscar no campo e no passado um refúgio seguro e claro. Duas ameaças havia contra esses valores: a invasão cultural dos Estados Unidos (Moura, 1984), especialmente marcante no período da Segunda Guerra Mundial (Disney, Hollywood, Coca Cola etc.), e o centralismo econômico, político e cultural imposto pelo Estado Novo (1937-1945).
Em 24 de abril de 1948 um grupo de 24 jovens, estudantes do Colégio Estadual Júlio de Castilhos e ex-escoteiros - estes um pouco mais velhos, trabalhando como comerciários -, criaram o 35 CTG. Nas discussões preliminares surgiu a proposta de fazer da associação uma espécie de academia tradicionalista, restrita a 35 membros, mas prevaleceu a idéia de abri-Ia a todos os que desejassem integrá-la. Os jovens - todos homens -passaram a se reunir nas tardes de sábado num galpão (4)improvisado, na casa do pai de um deles. Tomavam mate e imitavam os hábitos do interior, entre eles o da charla que os peões.costumam manter nos galpões das estâncias.
“Nos reuníamos em torno de um fogo de chão lá na rua Duque de Caxias para contar causos. Eram só rapazes. Moças não pertenciam ao grupo, como habitualmente no galpão são só homens que... Cultuávamos aqui, no nosso encontro, como se estivéssemos na Campanha, tomando chimarrão, vez em quando até uma ca çhacinha aparecia, cada um entrava. com umas moedas, contribuía aqui e ali para comprara erva, os gastos eram mínimos. Não se tinha muita pretensão de revolucionar o mundo, embora nós não concordássemos com aquele tipo de civilização que nos era imposto de todas as formas (...) não pretendíamosescrever sobre o gaúcho ou sobre o galpão: desde o primeiro momento, encarnamos em nós mesmos afigura do gaúcho, vestindo e falando d moda galponeira, e nos sentíamos donos do mundo quando nos reuníamos, sábado d tarde, em torno do fogo-de-chão.”(5)
Queriam constituir um grupo que revivesse a tradição, e não uma entidade que refletisse sobre ela. Era, portanto, necessário recriar o que imaginavam ser os costumes do campo e o ambiente das estâncias. Por isso, a estrutura interna do 35 CTG não reproduziu o tradicional vocabulário das associações (presidente, vice, secretário, tesoureiro, diretor etc.), mas adotou os nomes usados na administração dos estabelecimentos pastoris (patrão, capataz, sota-capataz, agregado, posteiro etc.). No lugar de conselhos deliberativo e consultivo, criou-se o Conselho dos Vaqueanos; em vez de departamentos, invernadas. As atividades culturais, cívicas ou campeiras também receberam nomes ligados aos usos e costumes das estâncias gaúchas, como rondas, rodeios e tropeadas (Mariante,1976, p. 11).
Os estatutos do 35 CTG afirmavam: “O Centro terá por finalidade: a) zelar pelas tradições do Rio Grande do Sul, sua história, suas lendas, canções, costumes etc., e conseqüente divulgação pelos estados irmãos e países vizinhos; b) pugnar por uma sempre maior elevação moral e cultural do Rio Grande do Sul; c) fomentar a criação de núcleos regionalistas no estado, dando-lhes todo apoio possível. O Centro não desenvolverá qualquer atividade político-partidária, racial ou religiosa” (Barbosa Lessa, 1985, p. 64).
A origem social dos aderentes surpreendeu os fundadores, que, como vimos, haviam optado por abrir o Centro a todos os segmentos:“À medida que já íamos nos primeiros dias que o movimento foi se ampliando numericamente pra gurizada que estudava, os rapazes de melhor posição sócio-econômica, os filhos de fazendeiros ou já fazendeiros, foram se afastando do movimento. Ficou um movimento de pés-rapados, porque (...) esses jovens mais ricos não queriam se misturar com o povôo. Então, víamos aqueles que mais poderiam caos ajudar, por ter condições de trazer um cavalo, de contribuir para uma sede, eles foram saindo e nós, os que sobrevivíamos com nosso pequeno salário e ainda tendo que pagar estudo e tudo o mais, tínhamos que fazer correr na roda, cada um trazendo algo, que se não me engano foi o Glaucus que chamou de guampa de apojo. Era um guampa, copo de chifre, onde percorria na volta e cada um dava as moedinhas que dispunha para comprar chimarrão, a erva etc: (6)Embora não contasse com a adesão dos filhos de fazendeiros, nem encontrasse muita receptividade na capital, o ‘35’ se mudou para a sede da Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul (Farsul, hoje Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul), órgão representativo dos fazendeiros gaúchos:“Não é que Porto Alegre tenha nos recebido mal. Afinal, éramos jovens, simpáticos, alegres, comunicativos, trabalhadores e bons estudantes, e não havia motivo para a capital nos ter antipatia. Mas era uma cidade muito cônscia de sua responsabilidade como retransmissora da cultura cosmopolita e consumista e não tinha tempo a perder com nossas charlas e declamações.
Quando muito, sorria condescendentemente para nossos desfiles conduzindo a Chama Crioula no dia 20 de setembro, ocasião em que nos revitalizávamos ante a verificação de que não éramos meia dúzia de gatos-pingados, e sim uma dúzia. Duas dúzias talvez” (Barbosa Lessa, 1985, p. 75). A liderança tradicionalista se queixa constantemente da rejeição que sofreu por parte da capital e das elites gaúchas. Ressentida, ela considera que o sucesso de seu movimento não foi reconhecido e que o tradicionalismo
continua sendo visto como “coisa de grosso”.

CONTINUA NA PRÓXIMA POSTAGEM

Autor: Ruben Olivem

Fonte: Artigo 'Em Busca do Tempo Perdido: O Movimento Tradicionalista Gaúcho
Endereço:
http://www.ampocs.org.br/