VI - A Disseminação do Movimento Tradicionalista Gaúcho

SEXTA PARTE DO TEXTO:EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: O MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO(Ruben Oliven)
Embora o MTG não consiga controlar todas as expressões culturais gaúchas (Oliven,1984), nota-se claro crescimento do número de adeptos e da influência do Tradicionalismo, que é considerado hoje por seus líderes como “o maior movimento de cultura popular do mundo ocidental”, contando com “uma participação direta de dois milhões de pessoas” (Barbosa Lessa, 1985, p. 98). Os dados sobre os centros de tradições gaúchas são bastante precários e exigem cuidado. Em 1976, um historiador do tradicionalismo afirmou que “apenas decorridas três décadas, foram criadas cerca de seiscentas entidades nativistas, das quais quase quatro centenas encontram-se em atividade e fazem do tradicionalismo sua razão de ser” (Mariante, 1976, p. 12). Três anos depois, o mesmo número de CTGs ativos foi apontado na introdução à reedição de O sentido e o valor do Tradicionalismo (Barbosa Lessa, 1979, p. 4). Mas, a partir de certo momento, cresceu e passou a variar muito, sem correspondência com a realidade, o número de CTGs divulgado, sobretudo, pela imprensa local. Uma reportagem publicada pelo jornal Zero Hora em 22 de junho de 1986 fazia referência a mil CTGs no estado; outra, do mesmo jornal, edição de 4 de maio de 1989, falava em “quase 1.500”. Os dados do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho; datados de 1987, assinalavam um total de 886 entidades, incluindo CTGs, piquetes, grupos folclóricos, associações, grêmios e outras. Em 24 de junho de 1988, o Diário do Sul publicou depoimento em que o vice-presidente do MTG afirmava a existência de 1.196 CTGs filiados. Mas, segundo um integrante do movimento, este número incluía todas as entidades tradicionalistas existentes no estado.A criação de um CTG é relativamente simples e freqüentemente se dá em função de disputas internas, o que ajuda a explicar o grande número de entidades em cidades pequenas. Nas palavras de um ex-patrão de CTG:“O cidadão frustrado na vida comunitária, aquele que não pode ascender socialmente numa sociedade ou no Rotary, ou no Lions, ou na maçonaria, entra facilmente para o CM. Resolve fundar um CTG efunda com a maior facilidade. E se torna um líder. Aparece aí na imprensa, é entrevistado, ganha uma relevância comunitária que explica a extrema abundância de CTGs no estado (...) No momento em que ele é derrotado por uma facção adversária no CTG, ele não se conforma com a derrota (...) simplesmente isto por cissiparidade, ele funda (...) outro CTG. (17)
Como o fazem os membros do MTG, cabe diferenciar entre CTGs (entidades mais completas) e piquetes (entidades parciais, cujo nome evoca os pequenos potreiros, ao lados das casas, onde são colocados para pastar os animais utilizados no cotidiano). Um CTG funciona como uma espécie de clube (em diversas localidades, é de fato o único clube existente), compreendendo diversos departamentos (as, invernadas, nome que evoca as grandes extensões de terra cercada que, nas estâncias, se destinam à engorda do gado). Um CTG se caracteriza pelas várias atividades que executa, nas áreas social (festas, fandangos), cultural (música, declamações), campeira (rodeios, gineteadas) e outras, tendo uma sede que funciona como centro de entretenimento e lazer. Os piquetes deveriam ser um desses departamentos de CTG, pois não precisam ter sede e seus integrantes, menos numerosos, se dedicam somente às atividades campeiras, deixando de lado as demais. Idealmente, cada piquete deveria ser filiado a um CTG, mas isso não ocorre na prática. Foi uma situação que fugia do controle do MTG: o grande número de piquetes forçou seu registro como entidades autônomas.
Atribui-se a origem dos piquetes a divergências entre grupos de um mesmo CTG que, descontentes, resolvem criar seus próprios departamentos campeiros (18), que, sem necessidade de sede ou de grande número de membros, se multiplicaram. Essa expansão pode indicar também que as atividades campeiras vêm conquistando mais preferência entre os tradicionalistas.Apesar da discrepância de dados, possivelmente exagerados, houve um crescimento muito acentudado de entidades tradicionalistas nos últimos anos. Vale a pena examinar sua distribuição pelo estado. O movimento divide o Rio Grande do Sul em 27 ‘regiões tradicionalistas’, cujos critérios de constituição - em principio, geográficos - são considerados variáveis pelos próprios integrantes do movimento, que admitem a existência de outras injunções. Nas palavras de um dos seus membros,“no início era devido d localização geográfica e há até certo tempo as regiões tradicionalistas correspondiam às regiões educacionais do estado (...) Mas hoje a gente sabe que a questão política está sempre por trás...”Não trabalharemos com as 27 regiões tradicionalistas propostas pelo MTG, mas com as doze Regiões Culturais (ou pólos culturais), desenhadas pelo então secretário de Cultura, Desporto e Turismo, Barbosa Lessa, com o objetivo fazer um mapeamento cultural do estado. Além do aspecto geográfico, essa divisão leva em consideração, entre outras, características históricas, étnicas e culturais das regiões, assim discriminadas: Litoral Norte, Missões, Campos de Cima da Serra, Litoral Sul, Central, Sul, Campanha, Colonial dos Vales, Colonial da Serra, Planalto, Alto Uruguai e Metropolitana.Confrontando-se os dados de 1987 sobre entidades tradicionalistas, obtidos junto ao MTG, e os dados sobre população do mesmo ano preparados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatfsticá, pode-se elaborar uma tabela:

As regiões que apresentam a maior proporção de entidades em relação à população são, pela ordem, Campos de Cima da Serra, Litoral Norte e Central, que também apresentam maior presença de piquetes (em Campos de Cima da Serra eles são mais numerosos que os CTGs). Trata-se de regiões formadas por uma maioria de municípios pequenos, com quatro a vinte mil habitantes, onde se encontram algumas cidades de médio porte (Vacaria, Cachoeira do Sul e Santa Maria). Além disso, são relativamente próximas a Porto Alegre, no contexto do estado. Esses dados colocam em dúvida a idéia corrente de que o Tradicionalismo seja mais forte nas regiões de fronteira. Mas se pode contra-argumentar que, nestas últimas, a vida campeira tem maior presença no cotidiano e não precisa ser recriada em entidades especificas.
Com menor proporção de entidades em relação à população aparecem, também pela ordem, as regiões Metropolitana, Colonial dos Vales e Litoral Sul. Cada uma tem características específicas, mas há pelo menos um traço em comum: a presença de municípios de médio e grande porte. A Região Metropolitana de Porto Alegre é toda formada por cidades consideradas populosas (a menor delas tem cerca de sessenta mil habitantes); no Litoral Sul, há um município de médio porte, Rio Grande; a Região Colonial dos Vales abriga municípios de grande e médio porte, como Novo Hamburgo, São Leopoldo e Santa Cruz do Sul. Legalmente, os dois primeiros fazem parte da Grande Porto Alegre, mas foram incluídos nessa região cultural por causa da colonização alemã.
Apesar de existirem particularidades, pode-se inferir uma relação inversa - não unívoca - entre a população dos municípios e a presença de entidades tradicionalistas. Diversos fatores podem contribuir para isso, como o menor peso das atividades rurais e a maior diversificação das atividades de lazer e diversão nos municípios maiores e mais urbanizados. Pode-se argumentar que, além de preservar a identidade regional, o CTG atua como clube, cobrando mensalidades mais baratas que as dos congêneres, como destacam os integrantes do MTG. Assim, possibilita-se a participação de maior número de pessoas. Mas é bom lembrar que, para participar plenamente das atividades de um CTG (fandangos, rodeios, festas campeiras etc.) o sócio precisa ter, no mínimo, um traje típico (botas, bombacha; vestido de prenda etc.). Além disso, os participantes investem elevadas quantias em atividades, como as campeiras, que exigem cavalo, deslocamentos para outros municípios etc.

O Tradicionalismo gaúcho em outros estados

O Tradicionalismo também se expandiu para fora do Rio Grande do Sul, um dos estados de maior emigração do Brasil. Entre 1920 e 1950, o êxodo gaúcho foi de trezentas mil pessoas; nesse último ano, saiu dali o maior contingente de migrantes e chegou ali o menor número deles. Em busca de novas fronteiras agrícolas, essa emigração geralmente se deu do interior do Rio Grande do Sul para o interior deoutros estados, principalmente Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso.

Em 1980, cerca de novecentos mil gaúchos (11,5% do total) moravam fora do Rio Grande do Sul. Mais de cinqüenta mil deles estavam estabelecidos em Mato Grosso, indicando uma nova frente de expansão agrícola. Diante dessa expressiva diáspora, não surpreende que em 1987 houvesse 183 CTGs e mais de duzentos piquetes de laços distribuídos por 93 dos 199 municípios de Santa Catarina. De forma significativa, os CTGs pioneiros foram criados em 1959 em São Miguel do Oeste e em 1961 em Lages, áreas para onde se dirigiam muitos migrantes gaúchos.
Em 1962 foi criado o Movimento Tradicionalista Catarinense, mais tarde chamado de Associação Tradicionalista Gaúcha e depois, na década de 1980, Movimento Tradicionalista Gaúcho de Santa Catarina. Mas essa disseminação “não está acontecendo apenas naquelas regiões onde o fluxo migratório rio-grandense no século passado e no inicio deste século foi intenso (...) mas, também, no Litoral (portugueses e açorianos) e nas Encostas (alemães, austríacos, italianos etc.), áreas que em sua formação não sofreram influência gaúcha” (Nunes, 1987, p.2).
No Paraná existem 156 CTGs filiados ao Movimento Tradicionalista Gaúcho do Paraná, que tem treze regiões. Nesse estado, o gauchismo é um sentimento tão forte que, num número da revista da Fundação Cultural de Curitiba dedicado a essa questão, o autor de um texto - sugestivamente intitulado ‘Passe a cuia, tchê!’ reivindica: “não se veja nos CTGs algo exclusivamente do Rio Grande do Sul (...) Os centros de tradições gaúchas, os CTGs, revivem uma tradição que é comum a Uruguai, Argentina, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Somos todos ‘gaúchos’( ...), velhos conhecidos, tomadores de mate e comedores de churrasco”. (Tramujas Neto, 1989, p. 25).
No Mato Grosso do Sul há aproximadamente 35 centros filiados à Federação dos Clubes de Laço. Em vários outros estados existem centros semelhantes. Em outubro de 1988, foi realizado em Santa Catarina o I Congresso Federal de Tradição Gaúcha, no qual foi aventada a criação da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha, assunto que ainda se encontra em estudos (Fagundes, 1988, p.12).
Pode-se argumentar que, ao cultuarem costumes e valores das estâncias da Campanha, os colonos gaúchos que emigraram para outros estados estão fazendo referência a um mundo ao qual, na verdade, não pertenceram. Ao sofrem do Rio Grande do Sul, onde tinham no máximo alguns hectares de terra, e adquirirem glebas bem maiores em áreas de fronteira agrícola, eles simbolicamente deixaram de ser pequenos colonos e se transformaram em grandes fazendeiros, isto é, ‘gaúchos’. Não é descabido imaginar que, no futuro, haja mais CTGs fora do que dentro do Rio Grande do Sul. Embora muitas entidades tradicionalistas de outros estados provavelmente já não sejam freqüentadas por gaúchos natos, mas por seus descendentes, sua existência denota uma grande saudade da querência, em busca de origens rurais perdidas - ou jamais possuídas -, à semelhança do que ocorreu com os fundadores do ‘35’. (19)